sábado, 23 de janeiro de 2010

A HISTORIOGRAFIA E A LITERATURA

ESTE TEXTO É RESULTADO DE PESQUISAS REALIZADAS EM TORNO DO NOVO ROMANCE HISTÓRICO, DE FICÇÕES HISTORIOGRÁFICAS E PRINCIPALMENTE DE TEORIAS SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA. FOI PRODUZIDO EM 2007 .










II. A HISTORIOGRAFIA E A LITERATURA

Porque só é possível conhecer bem um povo, como um indivíduo, se esse conhecimento alcança uma certa dimensão histórica. Para julgar ou extrapolar não é suficiente o conhecimento da realidade atual. É o conhecimento de toda a curva que conta.
(Joseph Ki-Zerbo)

Na senda do pensamento de Ki-Zerbo, este texto faz um percurso tanto pela escrita da história, quanto pela da literatura, abordando principalmente as formas de construção da história de Angola, e a de Portugal, no que refere especialmente aos períodos abordados nos romances Memorial do Convento e A gloriosa família: o tempo dos flamengos. Para isso, é necessário aparar algumas arestas teóricas para reorganizar conceitos teóricos que alicerçam as idéias aqui inscritas.
Segundo Hayden White (1973), a historiografia narrativa tem como característica o emplotment, a organização dos fatos da história em um enredo claro com início, desenvolvimento e conclusão. A história, vista sob essa perspectiva se organizaria como dramatização do material histórico, disposta em uma linguagem tanto denotativa quanto conotativa, pois ela não dispensa os tropos, como a metonímia, a sinédoque, a ironia e as metáforas. Essa historiografia busca utilizar o passado e colocá-lo num contexto histórico, assim criando um significado para o presente e para o futuro, modelo presente na criação de diferentes historiografias nacionais.
Para historiadores como Hayden White (E.U.A.), Paul Ricoeur, Roland Barthes (França), Reinhardt Kosellek, Eberhard Lämmert e Hans Robert Jauss, (Alemanha) – respeitadas as singulares diferenças entre eles –, a História aparece não como uma sequência de acontecimentos a serem descobertos em suas relações objetivas, mas como um sem-número relativamente caótico de fatos, cuja seleção e organização dependem da perspectiva, do conhecimento, do interesse cognitivo, da ideologia e da formação literária do historiador.
Esse conjunto de variáveis que atua sobre a organização ou o “momento de produção” do texto do historiador, certamente permitirá as diferenças que se observa entre as diversas escritas da História em um e outro autor, em um e outro contexto social. E, nas entrelinhas dessas escritas, as diferentes ideologias que as perpassam.
As discussões em torno do “documento” da historiografia constituem um dos principais pontos de polêmica no registro escrito do fato histórico, abrindo uma discussão que passa pela questão da “veracidade” de relatos orais de pessoas que trazem em suas memórias acontecimentos do passado, ou mesmo do presente, que podem ser inseridos entre outros documentos na construção da escrita da História.
Essa questão permite a abertura de uma discussão se esses textos orais (coletados e transcritos por pesquisadores, escritores, antropólogos, historiadores) pertencem a tal e qual ciência, ou ainda, à lingüística e à literatura, de maneira que os debates no meio acadêmico entre os estudiosos de áreas definidas tornam-se calorosos e, geralmente, inconciliáveis.

1. A concepção de História e Literatura a partir do Ocidente

O tema da literatura e história nos países colonizados obriga a uma reflexão das relações de forma e conteúdo entre a própria literatura e história, por um lado, observando suas diferenças em cada contexto específico, entendendo que as semelhanças e as diferenças são construídas a partir dos pressupostos que fundam e dos objetivos que guiam tanto a produção discursiva quanto sua análise. Essa idéia pressupõe que é preciso entender as semelhanças e as diferenças entre determinadas práticas discursivas historiográficas, literárias e antropológicas e, longe de decidir quais são melhores ou piores, explicitar as suas diferenças, desmitificando o caráter ideológico dominante que se encontra submerso em sua disseminação e prática.
Segundo Walter Mignolo (2001, p. 116), teórico e crítico da Literatura, o desafio das diferenças implica que sejam reconhecidas e que sejam incômodas para quem propõem o desafio. Segundo ele, para que se possa propor uma semelhança entre A e B, é preciso que primeiramente A e B tenham sido tomados como diferentes. Aceitando esse pressuposto lógico, para que sejam enfatizadas as semelhanças entre Literatura e a História é necessário que prevaleçam as diferenças.
Para este teórico da literatura, duas convenções são fundamentais para distinguir História e Literatura: a convenção de veracidade e a convenção de ficcionalidade. A expressão consciente (das convenções) se forja, possivelmente, durante e, a partir do século XVIII, – apesar de encontrarmos, ainda no século XVII, “ficção” utilizada como sinônimo de “mentira”.
Na convenção de veracidade, a linguagem é empregada de tal maneira que: a) um enunciador de uma comunidade lingüística, ao desempenhar uma ação lingüística, espera que os outros membros (interlocutores) dessa comunidade, envolvidos na ação lingüística, aceitem que o falante se compromete com o “dito” pelo discurso (o falante poderia mentir ou expor-se à desconfiança do ouvinte). E, b) o enunciador espera que seu discurso seja interpretado mediante uma relação “extensional” com os objetos, entidades e acontecimentos dos quais fala (por isso, o enunciador está exposto ao erro).
Por outro lado, na convenção de ficcionalidade, a linguagem é empregada de maneira que um enunciador de uma comunidade lingüística, ao desempenhar uma ação lingüística, espera que os outros membros da comunidade, envolvidos nessa ação reajam de acordo com a convenção de ficcionalidade e aceitem que: a) o enunciador não se compromete com a verdade do “dito” pelo discurso (por isso, o enunciador não está exposto à mentira). E, b) o enunciador não espera que seu discurso seja interpretado mediante uma relação “extensional” com os objetos, entidades e acontecimentos dos quais fala (por isso, o enunciador não está exposto ao erro nem à mentira). (MIGNOLO, 2001, p. 122-3)
Aceita a relação lógica estabelecida por Mignolo, conclui-se que a mentira consiste no emprego da linguagem pelo enunciador para fazer com que o intelocutor acredite que este se enquadra na convenção de veracidade, quando isso não acontece; enquanto a ficção, ao contrário, consiste no emprego da linguagem pelo enunciador com o conhecimento, tanto deste quanto dos interlocutores, das regras do jogo ficcional, por isso não está sujeito à verificabilidade no espaço do real.
Para o historiador José Carlos Sebe Bom Meihí (2001, p.143), um dos debatedores do texto de Mignolo, “a montagem estruturada por Mignolo revela preocupações com certa lógica, fazendo-se valer de silogismos.” Nas linhas seguintes, Mignolo é censurado por supervalorizar o texto literário, e de conduzir suas conclusões à constatação de que a impossibilidade de recriação do [fato] acontecido leva à inevitável construção do fato, e assim, a história e a antropologia nada mais seriam do que a “literaturização” mais ou menos eficiente, procedida em termos de análise de um episódio eventualmente ocorrido.
Respeitando as idéias de Mehí, este trabalho defende a posição de Mignolo, e considera que o teórico de Literatura privilegia justamente as diferenças e procura conceituar as questões de semelhança, sob uma ótica política, valorizando a questão da fantasia na literatura. Essa visão passa justamente pela questão da maneira como o pensador trata da origem da história a partir do “fundo da idade grega”, o qual questiona, pois essa afirmação vincula de forma irremediável o aparecimento da História não especificamente à escrita, mas à escrita alfabética, ou seja, à escrita da História do Ocidente. Sob essa perspectiva, Mignolo questiona se não haveria história na Mesopotâmia, no Egito, na China ou nas culturas e civilizações da meso-América e dos Andes?! Segundo ele, ao longo dos períodos de tempo,

Pouco a pouco, vai-se gestando a consciência de que os povos agráfos (o que passa a significar “alfabeticamente agráfos”, já que as civilizações meso-americanas eram “grafas” e os incas haviam desenvolvido um complexo sistema de “escritura” que não consistia em assinalar marcas em superfícies sólidas, mas em usar as mãos para “tecer signos”, cf. Ascher e Ascher, 1981; Cummings, 1991) são povos sem história. Não tenho a intenção de justificar que eles a tinham, mas quero inverter a perspectiva: a prática semiótica que na Grécia se chamava istoreo (informes de testemunhas oculares ou transmitidos por testemunhas oculares), e o verbo istoreo (investigar, perguntar), em Roma, adquiriu uma dimensão cronológica que não havia no conceito grego. Esta maneira regional de conceber as formas de registrar, conservar e transmitir o passado universalizou-se com a expansão do oeste cristão, a partir de fins do século XV e gerou a incompreensível ideia (partindo dessa nova perspectiva que estou colocando) de “povos sem história”. O mesmo argumento poderia ser desenvolvido em relação à poesia e à literatura. (MIGNOLO, 2001, p. 118-19)

Essa relação de tecnologia dominante da escrita alfabética dos povos ocidentais sobre os povos do mundo colonizado é observada não somente na América, mas também na África, local em que as sociedades de fato ágrafas terminam por incluir-se na perspectiva de “povos sem história”, portanto, considerados bárbaros, sob a concepção do Ocidente alfabético.
A constatação, segundo a perspectiva de Mignolo, “incompreensível”, revela a extensão, o alcance de uma ideologia dominante do ocidente europeu que, segundo ele, se forma a partir do século XV. Essa propagação ideológica se encontra na relação que se estabelece entre os povos de América, África e Ásia e os “descobridores”, que necessitavam de um conjunto de justificativas que os legitimassem como povos superiores, permitindo-lhes, assim, exercer um domínio sobre os “descobertos”. Essas justificativas precisavam de um conjunto de idéias legitimadoras. Resulta, então, que as tecnologias (de guerra, a escrita, transportes, etc.) que os povos de América e África não dominavam constituíram-se como instrumentos que representavam o poder dos europeus sobre os não-europeus, e, entre elas, encontrava-se a escrita alfabética de origem grega e latina.
Assim, essa concepção de “história escrita”, e escrita alfabeticamente, transformou-se em paradigma e sinônimo de “História Oficial”, de maneira que as histórias do Ocidente se moldam pelas regras e normas organizadas para escrever essa história. Mas os modelos teóricos historiográficos não se mostram eficientes para resolver o registro das histórias de sociedades ameríndias, pois os signos utilizados nas escritas de algumas destas não eram “alfabéticos”. Isso impossibilitou às sociedades tradicionais de América e, assim, também, as de África, estabelecer um “lugar próprio” para suas Histórias.
Georg Lukács, ao teorizar sobre a escrita do romance, e compará-lo com a epopéia, já constatava a impossibilidade de encontrarmos “nosso lugar” [como europeu, mesmo que era] no interior do universo fechado do helenismo. Diz ele:

O círculo metafísico no centro do qual vivem os Gregos [Helênicos] é mais estreito do que o nosso; é por isso que nunca lá poderíamos encontrar o nosso lugar; ou melhor, esse círculo cuja finitude constitui a essência transcedental da sua vida, quebramo-lo nós; num mundo fechado, não podemos continuar a respirar. Descobrimos que o espírito é criador; e é por isso que, para nós, os arquétipos perderam definitivamente a sua evidência objectiva, e o nosso pensamento segue de ora em diante o caminho infinito da aproximação sempre inacabada. Descobrimos a criação das formas e, desde então, falta sempre remate final àquilo que as nossas mãos lassas e desencorajadas abandonam. Descobrimos em nós mesmos a única verdadeira substância e, desde então, fomos obrigados a admitir que entre o saber e o fazer, entre a alma e as estruturas, entre o eu e o mundo, se cavam abismos intransponíveis e que para lá desse abismo toda a substancialidade flutua na disserção da reflexividade. (LUKÁCS, s/d, p. 33)


Se para os próprios europeus era difícil encontrar o “seu lugar” no interior do universo grego, tal lugar seria impossível para os povos sem escrita. Assim, ao quebrar-se o círculo perfeito do mundo grego, representado na construção das epopéias e de outras obras que influenciam o Ocidente há milênios, o homem dos séculos XVIII e XIX foi capaz de elaborar outras formas de organização no espaço da literatura, deslocando a forma da epopéia, ainda muito presente nos escritos até o século XVII.
Sob essa perspectiva, somente rompendo com os paradigmas de que a História ter-se-ia originado exclusivamente do “fundo da idade grega” é que se torna possível refletir sobre as diferentes formas de construir História e Literatura nos contextos de diferentes sociedades nos demais continentes.
A transplantação da história mais valorizada, associada ao conceito de escrita, inicialmente e principalmente, de “escrita alfabética”, posteriormente, faz escola e se atrela à ideologia dominante com a expansão do oeste cristão, que perdura durante os séculos XVI, XVII e que, segundo ele, tomará novas formas a partir do século XVIII. Ela tornar-se-á, então, um paradigma para a construção das “histórias” dos povos colonizados, cujas escritas tratarão suas próprias histórias somente em relação à história do colonizador europeu.
A partir do século XVIII, o sentido de “história” – antes concebida como istoreo e seus fundamentos e, posteriormente, aceita pela definição ciceroniana como “testemunhas dos tempos, luz da memória, mestra da vida...” – “deu lugar a uma concepção da história que deve muito a Jean Bodin e a seu Método para a Fácil Compreensão da História (1566)”, e ela entra no sistema das ciências, já concebidas como um saber adquirido por meio do exame crítico da documentação ou da busca de “leis” do mundo humano (concepção científica da História).
Quanto à literatura, nos diz Mignolo (2001, p. 117) que o conceito era desconhecido na Grécia, pois não havia o conceito de letra = littera, mas o de gramma. Aristóteles estabeleceu a diferença entre poesia e história em termos de imitação = mimesis = representação. Quando o vocábulo gramma foi introduzido no vocabulário da Idade Média latina, foi traduzido por littera e passou a designar tudo o que se encontrava escrito em caracteres alfabéticos, cujo significado é muito diferente do termo grego poiesis = fazer, arquitetar escrita. O homem versado em latim, o sábio, passou a ser denominado litteratus que, durante muito tempo, foi sinônimo de clericus, e designou os “homens de saber”.
O conceito de poiesis designava o produto das atividades verbais baseadas no conceito de imitação e, ao ser substituído por littera (literatura), sofreu uma mudança paralela na noção de estética = aisthesis - que em grego correspondia a “sensação” - e, a partir do século XVIII, passou a significar “sensação da beleza”. Literatura passou então a ter o sentido restrito de imitação, discurso escrito, beleza. Essa mudança inseriu-se em uma transformação mais ampla em que a noção de “arte” como um todo passou a compreender um conjunto de produtos semióticos orientados para a consecução de efeitos estéticos. A literatura, após o século XVIII, entrou definitivamente no sistema das artes.
Entre outras discussões que se levantaram ao longo de diferentes períodos, a reflexão sobre a história e a literatura passa pela concepção do devir, articulada em Auguste Comte, Hegel e Karl Marx, associados aos rastros que o pensamento darwiniano imprimiu às ciências humanas. Paralelamente, desenrola-se um conflito gerado pelas tensões entre a definição da historiografia como arte ou como ciência, debates enunciados a partir do século XIX por Menéndez y Pelayo (1883), Benedeto Croce (1919) e Cian (1896). Estas tensões continuam existindo ao longo do século XX, acelerados pela discussão em torno dos “testemunhos orais de pessoas que viveram os fatos”, depoimentos aceitos por muitos historiadores e rejeitados por outros, precedente que abre uma discussão sobre a existência da história em sociedades ágrafas.
A escrita dominante da História no século XIX tinha o propósito de enunciar o passado “como foi”, ainda uma espécie de mímesis, no sentido tradicional do termo, com absoluto privilégio desse passado. Para Michel de Certeau (1975, p. 5) , “a historiografia traz inscrita em seu próprio nome o paradoxo – e quase o oxímoro – da relação entre dois termos antinômicos: o real e o discurso. Ela tem por tarefa articulá-los e, onde esse vínculo não é pensável, fazer como se os articulasse”.
De acordo com Certeau, o real e o discurso parecem oxímoros (ou quase), pois se considerava que, por influência das ciências naturais, a memória conservava íntegras as lembranças como se fosse um dado material, enquanto a linguagem funcionava como um meio de preservação, incapaz de modificar o teor dessa lembrança. No entanto, a tematização do real por meio de lembranças (e aí se encontram as imagens) é vista por Sartre (1948, p. 229) de maneira muito diferente. Para este, “a tese da consciência imaginante é radicalmente distinta da tese da consciência realizante”. O que significa dizer que o tipo da existência do objet imagé (objeto sob imagem), enquanto está sob a imagem, se distingue, por natureza, do tipo de existência do objeto apreendido enquanto real.
Essa relação assimétrica entre a imagem do objeto e o objeto em si concorre para a primeira impossibilidade da simetria da lembrança com o real. Isso promove não necessariamente uma relação de mímesis, mas da representação, após a filtragem do inconsciente e do consciente do objeto e, também, do fato real.
Então, se é impossível essa relação, tanto o que se encontra na escrita, produto da consciência realizante, quanto o que se encontra na oralidade, também produto de uma consciência realizante, estariam de qualquer maneira sujeitas a um filtro subjetivo, ou seja, o filtro das habilidades, competências, ideologias e conhecimentos humanos.
De qualquer forma que apareça a história (a forma oral ou escrita), ex-cêntrica às formas da história ocidental é importante observar que suas diferenças em relação à História oficial encontram-se vinculadas à veracidade pela possibilidade de verificabilidade de pertença dessas formas orais à determinada comunidade e, de fato, originada em tal e qual tempo histórico. Dessa maneira, o registro escrito ou as comprovações arqueológicas e antropológicas terminam por adquirir um peso maior do que os registros orais para a sociedade ocidentalizada no tocante a essa possibilidade de comprovação da veracidade, enquanto a literatura, ou mais propriamente a ficção não se encontra sujeita a tais comprovações.
Constatada essa idéia, não se pode atribuir à literatura pressupostos de “veracidade” e, nem ainda os de “mentira”. “Verdade” e “mentira” são convenções de veracidade, portanto não se encontram vinculadas aos pressupostos ou subentendidos que organizam o discurso ficcional, o qual se vincula à convenção de ficcionalidade.

2. A História dos ex-cêntricos

Joseph Ki- Zerbo, em História da África Negra, discute essa questão do registro oral nas sociedades ágrafas, cuja memória era preservada pela transferência do conhecimento acumulado de geração em geração por uma determinada classe social, o que não diferia muito de certo período na Europa. Diz ele:

Não foi já relembrado que também durante a Idade Média européia, em que todo o caso até ao século XIII, só uma ínfima minoria da aristocracia sabia ler e escrever? Grande número de barões e de condes eram analfabetos. Em África, só a classe dos monges escribas como os ulemás do Tombuctu medieval, transmitia a chama do saber e da história. (KI-ZERBO, 1999, p. 17)

Ki-Zerbo, considerando as condições do primado da oralidade na África sobre a tecnologia da escrita, sugere que a história dos países africanos só pode ser reconstituída na escrita, a partir dos vestígios que se encontram, principalmente, enterrados, os quais dependem de ciências como as fontes escritas (egípcias, núbias e greco-latinas, árabes, européias ou soviéticas, africanas – meroítas, etíopes, etc -, asiáticas e americanas). E, ainda pode ser desvendada através da cronologia, da tradição oral, da arqueologia, da linguística, da etnologia e da antropologia cultural, da arte, da etnobotânica, da etnozoologia, e da paleobotânica, da antropologia física, dos quadros geográficos e dos quadros cronológicos.
Os quadros cronológicos, na História da África, só poderiam ser considerados em função dos princípios apontados por esse historiador, de tal maneira que seja possível distinguir as seguintes fases (cronológicas):

1) as civilizações paleolíticas caracterizadas por um leadership incontestável da África; 2) a revolução neolítica e suas conseqüências (desenvolvimento demográfico, migrações, etc.); 3) A revolução dos metais ou a passagem de clãs a reinos e Impérios; 4) os séculos de reajustamento: primeiros contactos europeus, tráficos de escravos e suas conseqüências (séculos XV-XIX); 5) a ocupação européia e as reacções africanas até o movimento de libertação após a segunda guerra mundial; 6) a independência e seus problemas.
É bem evidente que nunca existe uma separação perfeitamente nítida e que nem todas as regiões de África entram no mesmo ritmo em cada um destes períodos. Mas o cenário geral não deixa de ser este.
Esta divisão tem a vantagem de pôr em realce os principais elementos motores da evolução humana, ou seja, os fatores socieconômicos. (KI-ZERBO, 1999, p. 33)

Fundamentados nessa divisão, observa-se que os períodos históricos da África podem ser identificados com a história da evolução do homem nos cinco continentes, de tal maneira que é possível compará-la com outras histórias de outros povos. Por esse motivo, este trabalho utilizará essa cronologia sugerida sempre que referir-se ao texto produzido em Angola, denominando assim como referência ao período de dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX como “período de reajustamento”, conceito bastante apropriado, tendo em vista que as dinâmicas dos sistemas econômicos desenvolvidos em territórios “descobertos” no final do século XV e no XVI; passaram a funcionar em função de demandas econômicas exteriores, ou seja, foram “reajustadas” em função do capitalismo comercial europeu e do sistema mercantil-escravista nas colônias, braço do mercantilismo que propiciou o acúmulo de capitais europeus, capaz de incentivar o capitalismo industrial no século XVIII.
Com a ocupação européia a partir da Conferência de Berlim (1884-1885), na quinta fase indicada por Ki-Zerbo, pode-se considerar que houve um novo reajustamento, ou seja, o das fronteiras geográficas que terminou por dividir nações, sociedades e grupos étnicos, pela divisão imaginária que os europeus estabeleceram para a África, em um processo de apropriação dos territórios.
Para esse historiador, a palavra do “mais-velho”, ou do griô africano, que guarda em sua memória os cantos heróicos (um registro da História) de certos grupos sociais, precisa ser imediatamente coletada, pois:

(...) cada dia que passa vê desaparecer testemunhas preciosas. Cada velho que morre leva para a sepultura um pedaço das antigas feições deste continente. No decorrer de férias escolares tive ocasião de ouvir um deles cantar um trecho que uma guerreira africana de renome entoara diante dos muros de sua aldeia ao ver recuar os homens, antes de tomar ela própria o comando das operações. Era um canto épico, de rude beleza. Como não tinha então magnetofone, prometi a mim mesmo que o levaria nas férias seguintes. Dois anos depois pedi notícias do meu velho informador. Disseram-me que morrera. (KI-ZERBO, 1999, p. 37)

As recolhas de informações oriundas da oralidade, transferidas de geração em geração no interior de determinadas sociedades têm sido coletadas, embora seja verdade que muitas se perderam, seja pela morte dos que guardavam tais segredos poéticos, seja pelo processo de aculturação.
Nos territórios angolanos, muitos contos, lendas, histórias verídicas, adivinhas, canções, poemas e outras construções orais foram transferidos para a escrita no século XIX, o que permitiu resgatar muito de uma tradição oral, de maneira que não se pode afirmar que os povos de Angola não possuíam uma literatura nas formas como a concebemos. Ocorre que essa literatura não dispunha da tecnologia da escrita para que fosse eternizada. Segundo Manuel Rui, dirigindo-se em ensaio ao colonizador:

Quando chegastes mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala mas porque havia árvores, paralelas sobre o crepitar de braços da floresta. E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido e visto. É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam quando chegastes! Mas não! Preferiste disparar os canhões. (RUI, 1987)

O escritor angolano deixa implícitas as diferenças entre um texto tradicional angolano - acompanhado de gesto, dança e ritual - e o texto escrito ocidental. E acusa os colonizadores de não terem “ouvido e visto” as Histórias que eram contadas. Ou seja, aponta a ignorância do colonizador em relação aos colonizados, insinuando que os amos não os conhecem inteiramente, como pressupõem. E, ainda, contesta a inexistência de uma história local.
Em Angola, o missionário suíço Heli Chatelain, que ali chegou em 1885, tratou de recolher e estudar a literatura oral de vários povos africanos, organizando-as em categorias. Entre essas categorias encontra-se a classe das ma-lunda ou mi-sendu, nas quais os feitos da nação ou tribo eram transmitidos entre velhos e anciãos de uma geração a outra, na forma de segredo de Estado, revelado parcialmente fora do restrito círculo de competência e autoridade de cada sociedade, de acordo com Maria Aparecida Santilli (1985, p. 7).
A história, então, juntamente com outros segredos administrativos, era reservada a uma classe social, a dirigente, que se encarregava de manter viva a memória histórica do grupo social.
Quanto ao que se pode considerar como tradição oral, é preciso observar que essa forma de produzir conhecimento e arte com as palavras difere da forma escrita da literatura, pois juntamente com as estórias de ficção (os mi-soso), das estórias acontecidas (as makas), e a da poesia (os mi-embu) – cuja construção oral inclui formas épicas (epopeia oral) e dramáticas – encontra-se a manifestação do cenário e do gestual, ou seja, à maneira do teatro, praticado pelo griô, o contador de histórias, enquanto a poesia é sempre acompanhada pela música, ou canções e cantos associados a formas rituais.
Dessa maneira, a arte em forma poética nessas sociedades encontra-se relacionada a outras formas de arte que, integradas, organizavam um complexo sistema fônico-semiótico-sensorial peculiar a cada tradição. Por essa razão, é preciso observar que a palavra escrita tão-somente não é capaz de reproduzir essas manifestações artísticas que integram esse tipo de poesia em suas performances, características das sociedades africanas e também de sociedades ameríndias.
As descobertas dessas formas artísticas e muitas outras, tanto na África quanto na América Latina, e em outros lugares do mundo, obriga a refletir sobre a consideração da História e da Literatura, concebidas a partir das concepções consolidadas no século XVIII, na Europa, sob o controle da nascente burguesia e dos estados absolutistas como formas discursivas universais. É, pois, preciso considerar as formas não-ocidentais de construção da história e da literatura (oratura ou oralitura) estruturadas como singulares composições, envolvendo o cênico, o musical, o sensorial, etc., especialmente aquelas que podem ser (re)organizadas de acordo com gêneros também diferenciados dos gêneros ocidentais.
Mignolo (2001, p. 121), ao discutir a idéia de um método comparativo que se baseie em elementos comuns não determinados por uma base de conceituação ocidental, interroga quais práticas semióticas semelhantes às da sociedade ocidental são possíveis de identificação nas sociedades não-ocidentais.
Para ele, as comunidades necessitam conservar e transmitir o passado e, as formas de concebê-lo e de conceituá-lo, dependem das condições sociais e das tecnologias que possuem para guardá-lo; precisam projetar suas energias criativas de diferentes formas, seja através da linguagem oral ou dos diferentes sistemas de escritura.
Para ele, os conceitos da tradição ocidental e suas distinções serão tanto melhor vistas como maneiras regionais de resolver necessidades mais gerais das comunidades humanas e que devem ser utilizadas com modéstia.
Na senda dessa maneira de pensar sobre a construção e a organização da historiografia é que se comporta o Grupo de Trabalho História e Etnologia (GTHE), constituído por jovens acadêmicos - entre eles Pepetela, Adolfo Maia, Kasesa, João Vieira Lopes e Henrique Abranches - que se reúnem em Argel, entre os anos de 1963 e seguintes, no Centro de Estudos Angolanos, cujo trabalho de pesquisa termina por resultar na publicação de História de Angola (1965). Uma história articulada paralelamente à história ocidental, uma vez que os autores tiveram que “adaptar esta classificação [da História do Ocidente] à realidade angolana fazendo ao mesmo tempo a classificação da realidade angolana segundo o critério dos historiadores” (G.T.H.E., 1965, p. 33).
Dessa maneira, organizam a história a partir das Idades, subdividindo-a em: Pré-História, Proto-História e História. No período denominado Proto-História, os autores tratam dos Bochimanes, os primeiros povos dos quais se encontram vestígios de que habitaram (e ainda habitam o sul de Angola) o território angolano e, ainda, das migrações dos diferentes povos no interior do território (Kikongos, Nyanekas, Jagas, Helelos, Ngangelas, Kyokos, Ambós, Makokolos e Kwangalis). Quanto à História, os autores a subdividem em Idade Pré-Colonial, Idade Colonial e Período Contemporâneo. Mas o importante é observar que a Idade Pré-Colonial traz em si dois períodos: o Período Africano e o Período Afro-português.
A Idade Pré-Colonial se inicia com a fundação do Reino do Congo (século XIII até 1595), abarca a formação do reino do Ndongo – D’Ngola – (século XIV), que se tornou tributário do Congo, dependência esta rompida pelo rei Mbandi Ngola Kiluanje em 1556.
A chegada dos europeus aos territórios do Congo e do Ndongo – reino D’Ngola - marcam o período denominado afro-português. Os portugueses chegaram pela primeira vez ao Congo em 1482, e dois anos depois já estabeleciam aliança com o Mani Soyo, o tio do rei Nzinga a Nkuvu e, somente em 1520 foram pela primeira vez ao reino do Ndongo, governado na época pelo rei Kiluanje.
O período afro-português é marcado por mudanças extremas no comportamento da elite do Congo, refletindo em revoltas das massas populares que, insatisfeitas, tratavam de colocar-se contra os seus soberanos convertidos ao catolicismo romano (proibindo a religião local), administrando em função de demandas externas. Essas massas revoltosas foram lideradas por Mpangu a Kitina (1507), D. Jorge de Muxuebata (Revolta da Casa dos Ídolos) e Mbula Matadi (1570).
É importante observar que a transição para a Idade Colonial representou a imposição de uma ordem externa, ou seja, de um sistema estranho sobre uma ordem ou sistema interno já existente no território angolano, substituindo, gradualmente, uma dinâmica especificamente africana do modo de produção e comercialização por uma outra, européia, que não atendia mais às necessidades das populações do Congo.
Ngola Kiluanje havia presenteado o rei de Portugal com barras de prata e, por isso, em 1520, o rei D. Manuel enviou Baltazar de Castro e Manuel Pacheco, embaixadores do rei, ao reino do Ndongo (reino D’Ngola = reino D’Angola). No entanto, o rei do Ndongo que soubera o que havia acontecido no Congo (ascensões e quedas de reis promovidas pelos portugueses em curto espaço de tempo, revoltas populares, assassinatos, etc.), recebeu mal a Embaixada, que pretendia converter Ngola Kiluanje à fé católica, batizando-o com nome português, como os reis do Congo, e instalar em bom lugar os negreiros do rei, para dar início ao tráfico de pessoas. Manuel Pacheco termina morto e Baltazar de Castro fica prisioneiro de Ngola Kiluanje durante seis anos.
Em 1560, Paulo Dias de Novais chega a Luanda e o rei Ngola Kiluanje o torna seu prisioneiro durante seis anos, sendo libertado após esse período, é enviado a Portugal com a proposta de um comércio pacífico. Retornou em 1575, construiu uma Igreja e deu inicio a uma povoação colonial. Essa história e suas conseqüências são (re)contadas por Manuel Pedro Pacavira no romance Nzinga Mbandi (1975), que será também abordado em outro capítulo deste trabalho.
Quanto à Idade Colonial, é iniciada com a ocupação de Luanda, em 1575, quando chegam os primeiros colonos e se instalam no território. Assim, os portugueses promovem guerras contra os Estados Livres (Kissama, Matamba e Kassanje) que se encontravam na região do Kuanza, habitados pelos Jagas que possuíam territórios independentes (divididos em pequenos sobados). As divisões internas dos Estados (governados pelos Sobas) facilitaram a vitória dos portugueses, pois funcionavam independentemente uns dos outros. Dominados, estes passaram a “colaborar”, ora com os portugueses, ora com os locais.
A instalação de Novais na costa do território angolano leva Ngola Kiluanje a tomar providências: expulsa todos os mercadores e negreiros de suas terras e os que resistem são mortos, provocando a reação violenta de Novais. Inicia-se a guerra de armas de fogo contra armas brancas: catanas, arcos, flechas, etc. Em 1578, Kiluanje ataca o forte de Nzele, onde estava Novais, mas foi vencido, pela artilharia e espingardas dos portugueses. Mandou queimar as aldeias da Kissama e outros Estados independentes que, amedrontados, passaram a colaborar também com os portugueses. Passaram a pagar um imposto anual de cem escravos. Outros Estados, no entanto, resistiram durante séculos.
Atacado pelo Congo, a mando de Novais, Ngola Kiluanje vence, mas é assaltado novamente por Novais, em 1580, e totalmente derrotado. No local da luta, Novais mandou construir o forte de Massangano. Esse forte, mais tarde (1642), durante a ocupação das costas angolanas pelos holandeses, serviria como o principal reduto de refúgio dos portugueses que resistiram no território.
Essa fortaleza é um dos espaços (re)construídos no cenário do romance A gloriosa família: o tempo dos flamengos, de Pepetela, onde se encontram os portugueses, resistindo, durante sete anos, até que chega a ajuda dos colonialistas portugueses que exploram o Rio de Janeiro e os livra da condição de prisioneiros desse forte, em 1648.
O rei não desistiu e formou coligações, armando um exército que integrava os escravos que abrigava em suas terras, homens dispostos a tudo contra os colonizadores. Em 1590, a primeira Coligação era formada pelo Ndongo, os Jagas da Matamba e pelo Congo, que se rebelara, sob o comando de Nimi ne Mpangu. A partir daí, os portugueses sofreram derrotas sucessivas durante dez anos. Mas, a partir de 1600, os Jagas decidem aliar-se aos portugueses. Vendo a Coligação desfeita, os portugueses atacaram Ngola Kiluanje com grande exército e o rei foi capturado e levado para Luanda, onde foi decapitado em 1603 para “servir de exemplo”.
A ascensão ao trono, nos reinos africanos, acontecia por sucessão matrilinear, ou seja, o irmão do rei é que teria direito ao trono. O sucessor de Ngola Kiluanje foi Ngola Mbandi que, entre 1611 e 1617 foi sempre vencido, mas continuou resistindo aos portugueses, acontecendo o mesmo com Nambuangongo, o soba dos Dembos, apesar da resistência. Kabassa, a capital do Reino do Ndongo foi conquistada em 1620 e Ngola Mbandi refugiou-se em uma ilha do rio Kuanza. Seus generais, no entanto, andavam por toda parte, fazendo assaltos aos portugueses.
Nzinga Mbandi, irmã de Ngola Mbandi, portanto, herdeira do trono, convence o irmão a fechar um acordo com os portugueses e vai como embaixatriz a Luanda (1621) fazer uma trégua, aceitando a condição dos portugueses de entregar os escravos que haviam fugido. No entanto, Ngola Mbandi não respeita o acordo, permitindo que seus generais façam pequenos ataques aos portugueses, o que atrapalhava os planos grandiosos de Nzinga. Por isso, ela mandou executá-lo e exigiu para si o trono do Reino do Ndongo. Depois, viajou por diferentes territórios e conversou com diferentes sobas, articulando coligações e formando exércitos poderosos e, com estes, vencendo muitas batalhas.
Essa heroína é personalidade histórica transplantada para o romance Nzinga Mbandi, de Manuel Pedro Pacavira – inaugurador do novo romance histórico angolano -, e tem nesse texto uma configuração por vezes idealizada, funcionando como uma heroína, cujo perfil lendário e mítico é assegurado; enquanto no romance A gloriosa família: o tempo dos flamengos a rainha é configurada somente como figura humana, que representa um outro centro de poder. Embora o caráter heróico seja mantido, o mito é desconstruído e personagem funciona na narrativa como liderança e resistência dos povos locais. Seus movimentos pelo território apavoram os portugueses. Aliada aos holandeses, Nzinga faz um jogo mortal, impedindo que estes façam tráfico de escravos nas mesmas proporções que os portugueses.
Porém, a força das armas e as alianças com os interesses exteriores prevaleceram para muitos dos que a sucederam e o território foi pouco a pouco dominado, embora as resistências jamais tenham desaparecido, estendendo-se em batalhas sangrentas até meados do século XIX nos diferentes Estados que integravam o território angolano (Matamba, Kassanje, Bailundo, Bié, Tchiyaka, Estados do Planalto).


3. O invasor se impõe

A história do século XVII, tempo histórico abordado em A gloriosa família, bem pode ser contado pela narrativa Nzinga Mbandi, de Pacavira, pois aborda desde o momento da chegada dos portugueses ao reino do Congo, em 1482, e termina com a morte da rainha, no final do século. Nele, a história escrita pelos colonizadores, é parafraseada e também parodiada, mas mantém-se um vínculo com os fatos reais e os processos sócio- histórico-políticos. Dessa maneira, a história é recontada, mas pelo narrador angolano.
A presença portuguesa terminou por provocar uma desarticulação dos reinos então existentes no território angolano. O comércio, a agricultura e outras atividades comerciais já existentes nos territórios angolanos se mostram comprometidos. Se, por um lado, regiões estratégicas como os Dembos e o Soyo tornaram-se economicamente mais ricas, muitos outros Estados Independentes tornavam-se muito pobres, até miseráveis. A organização dos Impérios e Reinos quase desaparecia, sendo, finalmente, destruída. O artesanato estava prestes a desaparecer, pois os artesãos andavam nas guerras, enquanto o comércio com os países vizinhos decaía vertiginosamente. Somente as mulheres continuavam heroicamente seus trabalhos na agricultura. A guerra arruinava a economia destes povos e, na tentativa de evitar essa ruína, muitos faziam acordos.
No entanto, o comércio com os portugueses aumentou sempre (graças aos excedentes de produção que existiam nos reinos antes da chegada destes), surgindo, entre outros, duas novas espécies de comerciantes: os “pombeiros [pumbeiros] calçados” (brancos, negros e mestiços que andavam pelos matos e pelas cidades) e os “pombeiros descalços” (comerciantes dos Estados e sobados da região). Ainda os padres, soldados e oficiais portugueses também praticavam o comércio. Cada um trabalhava por sua própria conta. No entanto, os portugueses mantinham o monopólio desse tráfico de pessoas.
Mas, não satisfeitos em exercer o controle sobre a compra de mercadorias locais (principalmente marfim e outros produtos) e sua distribuição pela Europa, em determinado momento, os portugueses decidem substituir as moedas locais, os livongos, e os nzimbos, pela moeda portuguesa, determinando o controle absoluto pela soberania da base de troca.
Esse processo de domínio econômico, político e sócio-cultural, no entanto, não transitou de forma pacífica e linear, mas foi acompanhada de grande resistência por parte dos locais que, após serem vencidos, terminaram por participar, pelo constrangimento, do sistema econômico capitalista de capital mercantil-escravista que se impunha sobre o sistema econômico não-capitalista, ainda artesanal e comercial das sociedades africanas.
Essas histórias de resistências, de lutas, de contradições, acordos e articulações encontram-se como sustentáculo de muitos romances que foram escritos no decorrer do período de formação da literatura angolana e, ainda, no período de 1975 e anos que se seguiram, até a contemporaneidade.

4. A história do Centro

A história da Europa, como um todo, é conhecida e também atende à cronologia da Pré-História, ou seja, o período anterior à escrita e a História Oficial propriamente dita – escrita pelas elites sobre os próprios feitos -, ou seja, o período da escrita, e, entenda-se aqui, a escrita alfabética, característica dominante dos povos do continente, já esboçada no início deste capítulo.
A história de Portugal, que aqui interessa mais de perto, possui contornos muito diferentes da história de Angola, considerando que a tecnologia da escrita já se encontra à disposição – de uma elite, naturalmente - desde o aparecimento do Condado Portucalense que, herdado pelo nobre francês D. Henrique, separa-se da Espanha e passa em 1148 a Reino, ou seja, forma-se como primeiro Estado Absolutista da Europa. A sucessão em Portugal se organiza em função de uma herança patriarcal, ou seja, o governo do reino é transferido de pai para filho. A ascensão de D. Manuel ao trono português conduz Portugal a uma posição favorável em relação às navegações e ao comércio com os países do Oriente.
No entanto, as lutas entre católicos e muçulmanos gera distúrbios em relação ao comércio que era feito através do Mediterrâneo e a passagem por terra para a Índia se torna cada vez mais complicada, até que é interrompida pela tomada de Constantinopla em 1492 pelos turcos otomanos. Portugal, que depende dos lucros desse comércio, vê-se obrigado a encontrar um caminho pelo mar chamado na época Tenebroso (o Oceano Atlântico).
Há muito tempo antes, os portugueses já navegavam pelas costas da África, tanto que Diogo Cão aporta no reino do Congo em 1482. Mas, a partir de 1492, a necessidade de um caminho mais curto para Ásia se mostra urgente. Com o sacrifício e vidas do povo mais pobre (pois nos navios embarcavam os navegadores, os nobres fidalgos, mas a grande maioria era de homens do povo ou de prisioneiros que tinham suas penas revogadas em troca de embarcarem nessas viagens), os portugueses conseguiram um novo caminho para as Índias contornando o Périplo africano.
Esse evento histórico implicará em uma nova relação de dominação dos lusitanos com esses novos Estados africanos.
Por outro lado, o “achamento” das terras do Continente americano por Cristóvão Colombo para os reis católicos de Espanha, implica não somente uma comemoração e uma mudança de paradigma no tocante às perspectivas dos europeus em relação ao universo e ao próprio continente, mas marca ainda uma euforia geral no Velho Continente, o que levou outros países a procurarem terras mar afora.
Simultaneamente, essa descoberta inaugura para a Igreja de Roma um novo tempo, pois se cria a necessidade de levar como presente aos novos súditos de Isabel de Castela e Fernando de Aragão (os reis católicos), a fé cristã. Dessa forma, a interferência da Igreja e seu poder tomam proporções maiores, e inicia-se um período de grande perseguição a todos os que não professam essa religião na Europa, especialmente os judeus. A Inquisição se instala definitivamente na Espanha. Portugal, apesar das leis de proteção aos judeus, é lentamente forçado pela Igreja e pelo povo (os cristãos-velhos) a seguir os passos de seu vizinho poderoso.
O evento da descoberta de terras caribenhas incentiva os portugueses a procurarem terras também do outro lado do Oceano e, em 1500 chegam a Porto Seguro, e passam as explorar as terras de Brasil. Ameaçados pelos países vizinhos, a França e a Inglaterra, que protestam, os portugueses iniciam a colonização a partir de 1532. Se, durante esses trinta e dois anos o Brasil funcionou como colônia de exploração, a partir daí, foi preciso ocupar. Instalou-se a prática da monocultura da cana-de-açúcar (copiando um modelo já existente em São Tomé, Ilha da Madeira e Açores), associada ao extrativismo vegetal e mineral. Essas práticas, no entanto, exigiam muita mão-de-obra para o trabalho pesado de produção em larga escala.
No Brasil, as tentativas de utilizar como mão-de-obra os ameríndios de diferentes etnias mostravam-se infrutíferas, pois estes conheciam a terra e as florestas, para onde fugiam, além disso, eram muito frágeis e protegidos pelos jesuítas que se opunham à sua escravização.
Por isso, restava a Portugal resolver o problema da mão-de-obra pela imigração forçada e a África mostrou-se a solução para esse problema. O negócio da escravatura começa a tomar proporções a partir das primeiras plantações de cana-de-açúcar em terras brasileiras, quando os comerciantes iniciam o transporte de escravos apanhados em guerras de “kuata-kuata”, deflagradas pelos “pombeiros” ou “pumbeiros” nos territórios africanos, e vendidos aos mercadores nos portos do território angolano e outros.
Com esse processo, Portugal deixa de ser uma sociedade com sistema de produção centrado na agricultura, indústria artesanal e comércio, o chamado mercantilismo, para transformar-se em uma sociedade mercantilista com sistema mercantil-escravista, governada pelo absolutismo monárquico.
Esse modelo termina por ser copiado por muitos outros países, que transportam escravos para as colônias de América, a exemplo da Inglaterra, França, Espanha, etc.
O capitalismo nascente, então, no século XVII, consolida-se como um sistema mercantil no espaço europeu, e escravista no espaço ex-cêntrico, ou seja, no espaço fornecedor de matérias primas essenciais, de produção voltada especialmente à monocultura e à exploração, porém gerador das riquezas necessárias para que as pequenas fábricas que surgiam se transformassem em indústrias com produção em série. Nascia, assim, com o dinheiro do mercantilismo, e da exploração de metais e vegetais, o capitalismo industrial. Nesse processo, a Inglaterra exerce liderança absoluta.
Em Portugal, no entanto, essa transformação no sistema não se processa. Voltados ao mar e aos negócios e lucros oriundos dos territórios conquistados, as elites (nobreza e clero) necessitam ocupar esses espaços para garantir suas conquistas. Assim, mesmo que as fábricas locais sofressem grande desenvolvimento, não haveria no país mão-de-obra suficiente para trabalhar no processo. Dessa forma, permanece um país agrícola e artesanal, sem desenvolvimento científico ou tecnológico que as riquezas oriundas das colônias pudessem proporcionar.
A prática da escravatura em São Tomé, com mão-de-obra enviada pelas elites do Congo (escravos do reino) já era praticada desde 1485. Assim, o modelo de São Tomé é transposto para o Brasil e outros domínios europeus.
No entanto, muitos povos da África faziam forte oposição ao tráfico de pessoas para as colônias americanas (Brasil e Caribe). Isso levou os colonialistas portugueses a intensificarem a violência para adquirir essa mão-de-obra tão preciosa. Gastava-se muito dinheiro nas guerras e, ainda, no luxo da nobreza que permanecia em torno do rei.
A insistência de Paulo de Novais que, mesmo tendo sido prisioneiro de 1560 a 1565, retorna ao território angolano em 1575 e constrói uma fortaleza em Luanda, encontra-se estritamente relacionada com essa necessidade da elite portuguesa de manter o comércio de escravos para o Brasil, pois somente a mão-de-obra africana seria capaz de manter a expansão dos engenhos de cana-de-acúcar no nordeste brasileiro. Em Angola, outras povoações portuguesas surgiam.
As povoações que se foram criando chamavam-se Fortalezas ou Presídios. Nesses Presídios, os desterrados (ladrões, jogadores, salteadores, aventureiros, desempregados, condenados, judeus perseguidos, conversos, etc.) viviam como numa prisão, mas uns e outros saíam para fazer comércio ou lutar como soldados nas guerras. Portugal encontrava nessas expatriações, também, uma forma de ocupar o território africano.
Por outro lado, a dinastia de Avis é interrompida pelo desaparecimento de D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir, o que implicou na “união” entre a coroa de Portugal e Espanha, pois o rei Felipe II, de Espanha, reivindica e obtém o trono, apoiado pela aristocracia portuguesa, iniciando o período que se tornou conhecido por “União Ibérica”, em 1580.
A dinastia filipina no poder, então em guerra com os Países Baixos, especialmente a Holanda, gera um problema para os portugueses: suas colônias são invadidas pelos holandeses, a partir de um acordo imposto a Felipe II, que transferia à Companhia das Índias Ocidentais por certo período os direitos da exploração do comércio com as colônias, antes monopólio do rei de Portugal.
Os holandeses desde sempre circundaram as costas da África. Já em 1609, aportaram em Mpinda e procuraram maneira de fazer contatos para instalar nesse porto uma colônia holandesa, se houvesse quem lhes arranjasse escravos, mas foram expulsos pelos portugueses. Outras tentativas foram feitas em 1624 e 1627. Em 1635, um navio holandês foi apanhado com um grande carregamento de escravos saídos do território angolano, o que denotava pirataria.
Os holandeses já haviam tomado dois territórios brasileiros em 1637.
Finalmente, em 1642, chegaram à Baía de Luanda vinte navios holandeses que atacaram a fortaleza e apoderaram-se da cidade. Os portugueses refugiaram-se em Massangano, enquanto os navios seguiram em direção a Benguela, conquistando também aquela cidade e seu porto.
Em Portugal, essa situação parecia intolerável para o povo, no entanto, a aristocracia sentia-se confortável, uma vez que era favorecida pela dinastia filipina. A volta de um rei português para o trono marca o período conhecido historicamente como Restauração. O reinado de D. João III fora marcado pelo início da violência dos cristãos contra o povo judeu, que ali convivia há muitos séculos.
O período que se inicia com D. João III e se estende até D. João V, pode ser entendido pelo olhar de Herculano como, ao observar-se que cristãos-novos como Rodrigo Gomes Pinheiro “corria os distritos de Viseu e Aveiro em perseguição do judaísmo” . Lugares em que os judeus e cristãos-novos formavam comunidades foram, a exemplo de Trancoso e suas imediações, eram focos de violência e atrocidades do próprio povo. Segundo ele:

O tribunal da fé, funcionando por este modo, era mais do que tirania; era a anarquia vindo da autoridade. Nas revoluções de iniciativa popular há (sic) sempre os elementos de ordem que combatem os seus desvarios; (...) Aqui eram os elementos principais da ordem, o sacerdócio, a monarquia, a magistratura, que tumultuavam na praça, que agitavam a plebe e a impeliam contra uma classe pacífica e obediente, que representava em grande parte, na máxima talvez, as forças econômicas do país, era a subversão dos princípios fundamentais da sociedade civil, subversão proclamada em nome do evangelho. Nunca, nem antes nem depois, o cristianismo foi caluniado assim. Até os juízes pedâneos, que constituíam o último anel da cadeia na hierarquia judicial se erigiam de motupróprio em comissários da Inquisição, mandavam publicar as monitorias dos inquisidores, e procediam como delegados do tribunal. (...) (HERCULANO, 2002, p. 363)

A situação no reinado de D. João V não se encontra então, relegada à ação do povo, e liderada pela autoridade. O período retratado por Saramago corresponde àquele em que a Inquisição, devido às ocorrências dos períodos anteriores institui-se como órgão controlador da sociedade portuguesa, paga pelo rei – nesse caso, D. João V - que, como diz a personagem Bartolomeu Lourenço, “fará o que ela disser”.
Filho de D. Pedro II e de D. Maria Sofia Isabel de Neuburgo, D. João V casou-se com D. Maria Ana , a princesa da Áustria, em dezembro de 1705; e assumiu o trono de Portugal em 1706, sendo coroado em primeiro de janeiro de 1707. Juntamente com as colônias de Brasil, África e Ásia, herdou do pai a Guerra de Sucessão de Espanha – uma disputa pelo trono espanhol -, aliando-se à Inglaterra e à Áustria no intuito de coroar o arquiduque Carlos. Após a batalha de Almanza, em abril de 1707, tornou-se rei de Espanha Filipe V .
Por causa da Guerra, os franceses que jamais aceitaram o tratado de Tordesilhas, iniciaram ataques às embarcações e colônias portuguesas, especialmente o Rio de Janeiro. Com o Tratado de Utrech, assinado em 1715, as potências imperiais em guerra aceitam a paz. Essa guerra é significativa no enredo de Memorial de Convento, pois suas conseqüências para os homens, a marinha e as colônias encontram-se ali enunciadas.
D. João V era muito enérgico nas contendas com os embaixadores estrangeiros. Sob seu reinado, importantes nomes da diplomacia nacional se destacam: D. Luís da Cunha, Diogo de Mendonça Corte Real e Alexandre de Gusmão. Extremamente devoto, sua exagerada devoção provocou uma sobrecarga de despesas jamais vistas sobre a Fazenda Pública.
No entanto, não se pode dizer que não cometesse atos abomináveis perante os dogmas da Igreja, pois não tinha qualquer escrúpulo em violar as “esposas do Senhor”, como são conhecidas as freiras, o que lhe valeu a alcunha de “rei freirático”. Entre as suas prediletas, destaca-se Madre Paula de Odivelas, cujo convento transformou e sustentava com luxos, mantendo com a superiora um escandaloso romance.
Por outro lado, incentivou as publicações mesmo de autores pobres, edificou o Aqueduto das Águas Livres e fundou a Academia Cirúrgica Potótipo-Lusitânica Portuense, com destaque para os estudos cirúrgicos, mandando ainda traduzir e imprimir a obra Cirurgia de Le Clerc, em 1715.
Dividiu a cidade em Lisboa Metropolitana e Lisboa Patriarcal. Na Igreja patriarcal, realizavam-se solenidades imponentes, executadas por um coro de 70 cantores, dirigidos pelos professores Scarlatti, João Jorge, Jomelli e David Peres, eminentes mestres. Mandou tirar cópias de todos os livros de Coro usados no Vaticano e sustentou cantocanistas e liturgistas para que os executassem tal qual o uso e ritual pontifício.
Mas D. João V também apreciava música profana, tanto que apresentações de óperas aconteciam muitas vezes no teatro próximo ao Convento da Trindade, no teatro da rua dos Condes. Ele mandou construir um teatro no palácio de Belém, que havia comprado do Conde de Aveiras , em 1726. Também, paradoxalmente, permitia que a Inquisição perseguisse autores de peças de teatro e, inclusive, que os condenasse.
Pelo Decreto de 8 de Dezembro de 1720, D. João V fundou a Academia Real da História Portuguesa. O pequeno resto da livraria antiga da Sereníssima Casa de Bragança, el-rei mandou que fosse enviada na Real Biblioteca, composta agora por muitos mil volumes que mal cabiam no edifício denominado “O Forte”.
O rei enviou Manuel Pereira de Sampaio às Bibliotecas da Cúria Romana para que descobrisse ali tudo quanto pudesse a respeito da história do reino portucalense, e assim, formasse uma coleção.
Também sustentou muitos amanuenses fora do país durante alguns anos e comprou muitos livros com o objetivo de aumentar as coleções. Paradoxalmente, enquanto permitia que judeus e cristãos-novos fossem levados às fogueiras da Inquisição, mandou comprar e reunir uma coleção de bíblias hebraicas e de tudo quanto pertencesse a seus ritos, leis, costumes e polícia, em qualquer das línguas vivas. Essa coleção chegou a Lisboa em 1743.
Também mandou construir e organizar livrarias e bibliotecas na Universidade de Coimbra e em Mafra, e estabeleceu nesta última, escolas públicas com sete cadeiras, além de promover os estudos militares. Estabeleceu mais Academias Militares: uma em Elvas e outra no Minho.
Assim, a paródia de Memorial do Convento encontra-se relacionada a essa maneira paradoxal de “ser” do rei. Se, por um lado, incentivava a cultura e a ciência, por outro, sustentava de maneira inexplicavelmente fanática as ordens religiosas e deixava à mercê os trabalhadores e os pobres do reino.
Retomar esse período de retrocesso econômico, político e identitário da nação portuguesa em Memorial do Convento reflete, pelo passado singular, o semelhante retrocesso que se mostra evidente pelas intervenções do mercado globalizado em Portugal via burguesia local no final da década de 1980, em detrimento dos projetos sociais próprios do povo português, articulados a partir de 1975.

5. A História na ficção

A urgência de recuperar as histórias pessoais dos homens e grupos que, no factum, fizeram essa grande História torna-se inadiável. Por isso, muitos escritores angolanos têm se dedicado a recompor no fictum os espaços físicos e sociais que serviram de cenário para essa História, revivendo na configuração de cada personalidade da história oficial e cada personagem ficcional as possíveis formas de pensar e analisar o mundo à sua volta e suas relações com os demais, com o grupo, com os inimigos e com o poder tanto local quanto do colonizador.
Dentre esses romances, muitos trazem em seu bojo o sentido da História, ou seja, o momento histórico a que se reportam, constituindo-se como repositórios de cenários de:

a) um passado vivido pelo autor que recorre à sua própria memória para resgatar os modos de vida, costumes, formas de sentir, as relações, os fatos e acontecimentos capazes de mudar os rumos de certas sociedades, podendo ficcionalizar ou não muitos desses aspectos; a exemplo de Mayombe, Os cus de judas, Yo me llamo Rigoberta Menchú etc.

b) um passado vivido por uma ou mais testemunhas oculares que recorrem às suas memórias, e buscam recompor as histórias que viveram, procurando recuperar as emoções, costumes, relações, fatos e acontecimentos, podendo o autor inserir por meio da ficção muitos desses aspectos; a exemplo de Quem me dera ser onda; Bom dia camaradas, As pequenas memórias, A geração da utopia etc.

c) um passado não-vivido por uma ou mais testemunhas que recorrem às suas memórias e relatam histórias consideradas “verídicas” testemunhadas por seus antepassados, procurando relatar as emoções, costumes, fatos e acontecimentos que tenham alterado os rumos de certas sociedades ou grupos, podendo tanto a testemunha quanto o autor ficcionalizar alguns ou muitos desses aspectos; a exemplo de Yaka, etc.

d) um passado reconhecido por toda uma sociedade, seja pelo conhecimento de um registro oral comum a todos ou por um registro escrito comum a toda a comunidade, de tal maneira que se enquadre no todo “já-dito” do discurso universal daquele grupo a que se encontre associado, que pode ser tanto parafraseado quanto parodiado pelo autor que o recupera; a exemplo de Memorial do Convento, A gloriosa família, O tetraneto del-Rei, A casa das Sete Mulheres, Boca do Inferno, Nzinga Mbandi, El reino de este mundo, etc.

Em quaisquer desses casos, se mostra evidente que o passado pode estar enunciado nos escritos ficcionais que o reconstituem quanto nos que se reportam a uma historiografia oficial para desfigurá-la e, quem sabe, assim, chamar a atenção dos leitores para as relações que se organizam no presente, em função dos erros e acertos daquele mesmo passado.
Outras obras investem em formas de pensar e sentir e suas relações com determinados momentos históricos que refletem mudanças essenciais nas idiossincrasias, assim permitindo que o próprio indivíduo se possa perceber como resultado e resultante de um processo sócio-histórico-político cultural, relacionado ao meio em que vive. A título de ilustração, é possível observar essas relações em Mayombe, Muana Puó, O Cão e os Caluandas, A geração da utopia, Predadores, entre outros, de Pepetela, e, ainda, História do Cerco de Lisboa, O ano da morte de Ricardo Reis, Todos os Nomes, A viagem do elefante, entre outros, de Saramago, em que o viés histórico se encontra presente, embora em alguns, os fatos não se encontrem confinados a um tempo passado exclusivamente.
Por outro lado, há certo tipo de romance que retrata um tempo histórico delimitado, limitando-se o autor a discorrer sobre ele, mantendo o enunciado quase que restrito ao período que aborda. Embora recorra a analepses e prolepses, com enunciados da história, fazendo referência a um tempo anterior ou posterior àquele momento, procura não inserir no enredo principal fatos que rompam com as relações que ordenou, estritamente pertinentes àquele tempo que busca representar. Nesse caso, encontra-se aí o que Lukács (1965) denominou como romance histórico.
Assim, muitas obras literárias, ou seja, a literatura como arte aproxima-se o texto historiográfico, às vezes, a ponto de possa ser tomado como “história”. No entanto, não se pode atribuir ao texto ficcional a convenção de veracidade, como já ficou esclarecido nesse mesmo capítulo, o que invalida sua relação com a “verdade” ou a “mentira” da História. Na ficção, os objetivos do escritor não estão centrados em provar fatos, mas em utilizar-se de alegorias, analogias, homologias, metáforas, metonímias, símbolos, mitos e outros expedientes literários essenciais para despertar a reflexão dos homens para os processos e relações que estruturam a história, suas recorrências (guardadas as diferenças) e suas consequências que terminam por interferir na vida de cada um dos homens envolvidos em seus processos.
Apesar da aproximação do texto historiográfico e de certo tipo de texto ficcional que imita a história em diversas construções integrantes de sua composição, é possível afirmar que o primeiro se baseia sistematicamente em fontes documentais e possui um alto grau de verificabilidade intersubjetiva, enquanto o romance, que lida com dados históricos, não necessita de comprovação dos fatos nele referidos.
A crítica ao caráter literário da historiografia tem se intensificado nos últimos séculos e, principalmente, na contemporaneidade, provocando o desaparecimento da plasticidade e do indivíduo no texto histórico. Essa tendência foi verificada também em certa produção ficcional, como o nouveau roman, em que os eventos e ações narrados são cada vez menos narrativos.
Dessa maneira, o retorno do romance histórico na senda do boom da literatura hispano-americana na Europa nos anos sessenta pode ser explicado, em parte, pelo retorno do enredo cheio de ação e pela sensorialidade e certa lógica psicológica. Uma lógica que parece compor as “ficções históricas” que se encarregaram de preencher essa “lacuna” da narratividade em um segmento expressivo da literatura europeia.