segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O discurso ficcional (capítulo de tese escrito entre 2007 e 2008)

III. O DISCURSO

O texto necessita sua sombra! Essa sombra é em parte ideologia, parte representação, parte sujeito. (Mulvey)


3. O Discurso

Os discursos sempre foram um diferencial na vida do homem, a partir do momento em que organizou a fala e um código lingüístico comum ao grupo ou sociedade a que pertencia. Assim, entre os integrantes dos grupos sociais, havia aqueles que controlavam a arte do discurso para o povo. E, com o passar do tempo, o discurso tornou-se especializado a cada um dos que exerciam determinados lugares sociais, sendo um específico para o sacerdote do grupo, outro para o líder, outro para os homens que faziam os julgamentos, etc. Dessa maneira, também, pouco a pouco, formaram-se os discursos nas composições artísticas com as palavras. Algumas formas de organizar as palavras passaram a fazer parte quase que exclusivamente desses “discursos” artísticos.
Em qualquer de suas modalidades, como afirma Mulvey, todo texto tem sua sombra. O conjunto da sombra, juntamente com o sentido semântico ou os múltiplos sentidos veiculados pelo texto, e o seu sentido literal são constituintes do discurso. Nesses discursos se encontram: a ideologia, a representação e o sujeito. A sombra do texto constitui, então, sua face mais velada, da qual é preciso observar as partes que lhe são constituintes.
No entanto, a teoria sobre essas formas não se encontram inicialmente registradas em outros textos no Ocidente que não sejam os escritos gregos. Por isso, e não por acreditar que a literatura seja oriunda exclusivamente dos gregos, é que consideraremos neste estudo a origem dessa teoria, não da literatura em si.

3.1. O discurso e a Retórica

Na Grécia antiga, quando emerge entre os filósofos um pensamento sobre a linguagem e/ou sobre o pensamento lingüístico, a preocupação com a eficácia do discurso em diferentes e determinadas situações apresentou-se como o principal foco de interesse. Daí o surgimento da retórica, que implicou no estudo da força persuasiva do discurso. Naquela época, a Lógica e a Retórica ocupavam lugares sociais destacados no cenário do pensamento grego.
As reflexões sobre a linguagem produzidas ao longo da História eurocêntrica trataram de estabelecer uma dissociação entre o lógico e o retórico. No lógico, a questão das condições da verdade enunciativa ou do enunciado comprovadamente verdadeiro através da análise das proposições articulou-se sobre uma ontologia, enquanto no retórico tratou-se da apreensão da linguagem como um discurso produtor de efeitos, como articulação capaz de efetivar intervenções sobre o real, abandonando o requisito da verdade ou do comprovadamente verdadeiro, tornando-se uma espécie de utensílio ou instrumento útil a qualquer causa jurídica, política, social e, posteriormente, científica.
O convencimento pelo argumento tornou-se uma poderosa arma utilizada para legitimar as formas de poder dominantes nos sistemas sociais em diferentes momentos históricos, nos mais distintos espaços e tempos em todo o mundo ao longo da História. O convencimento pelo argumento não é forma de poder exclusiva das sociedades eurocêntricas, antes se encontram em inúmeras sociedades que sequer ouviram falar de estudos retóricos.
E, tanto nos textos orais europeus quanto na oralitura de diferentes povos, é possível encontrar os efeitos dos jogos retóricos – que melhor seriam analisados pela Oratória -, em que as inferências encontram-se no paratexto e, a título de ilustração, veja-se as relações entre os ji-sabu (provérbios) e as makas (narrativas sobre fatos reais), ou ainda nos ji-nongongo (adivinhas), no cenário da literatura oral das comunidades angolanas.


3.2. O conceito de discurso

A estrutura da linguagem é radicalmente condicionada pelo fato de ser ela mobilizada por enunciações singulares de aparente transparência, capazes de produzir certo efeito no âmbito de um determinado contexto espaço-temporal, efeito que remete ao universo da linguagem que pré-existe a seus enunciados, seja esse enunciado verbal ou não-verbal, oral ou escrito: os pré-construídos do discurso universal .
O conceito de discurso tem sido utilizado, geralmente, para delimitar o conjunto dos enunciados orais ou escritos, o seu conjunto de significantes, os seus significados denotativos e, ainda, seus significados conotativos, principalmente pelos teóricos que admitem que o texto se baste por si mesmo.
No que diz respeito ao discurso literário, algumas resistências são oferecidas pelo campo teórico dos estudos da Literatura ao entenderem na obra de arte uma relação mais ou menos evidente entre significante e significado (denotativo e conotativo), admitida como convenção, tornando elípticas as leituras dos subníveis dos enunciados. Assim, o conceito de discurso se encontra mais associado aos estudiosos da lingüística e dos campos relativos à semântica.
Entretanto, figuras como o símbolo, a alegoria, a ironia, as analogias etc. não encontram seus significados no enunciado em si, mas fora deles e estruturados por determinações sócio-culturais, no discurso "paratextual", seja ele imagético ou verbal. Assim, entendemos que a alegoria, o símbolo, as analogias, a ironia, entre outros tropos buscam no discurso pré-construído as formações discursivas que lhe são pertinentes como recursos de compreensão e desvendamento, como um recurso de memória ao pré-construído.
A literatura em prosa, normalmente, oferece ao leitor um conjunto de ditos, ou seja, de enunciados produzidos por personagens que pretendem representar seres vivos. O narrador se apresenta como uma dessas vozes e, por mais que se oculte, seu discurso se evidencia em uma tomada de posição, mesmo que aparente certa neutralidade.
Quanto às personagens, o conjunto de suas falas, seja pelo discurso direto, discurso indireto, ou indireto livre, constitui um universo de formações discursivas que tendem a organizar uma pertença dessa figura em relação a um lugar interior e, também, exterior ao objeto literário. Tendo em vista que nem sempre o contexto ou o ambiente encontra-se especificamente representado, os discursos da personagem indicam também um posicionamento diante do mundo que a circunda ou em relação a seu universo interior, que não pode estar, de forma alguma, dissociado da realidade externa. Cada personagem estrutura, assim, um mundo particular, articulado, em suas partes, tanto nas relações com as outras personagens quanto com o contexto construído no objeto literário.
Esses posicionamentos, tanto do narrador, ou dos narradores, quanto das personagens – veiculados por suas falas que, mesmo estilizadas na escrita, não deixam de constituir enunciados – em relação a certa ideologia teórica ou prática que só pode ser definida na correlação com as formações ideológicas que se encontram implicadas nas formações discursivas a que remetem os enunciados.
Segundo Jakobson o discurso – por ele considerado como conjunto de enunciados - que se encontra na linguagem literária - possui um diferencial em relação aos outros discursos: o que ele entende por literariedade; e seria o determinante da diferença entre o discurso literário e os demais discursos, de forma que essa característica seria capaz de determinar a separação de um objeto literário de um outro que não o seja . No entanto, é preciso observar que nesses estudos, centrados na questão da forma, geralmente, o objeto literário é abordado em desconexão com o contexto que o produziu. Este conceito não é capaz, no entanto, de estabelecer a "diferença" entre o discurso literário e os outros.
A apreensão do(s) sentido(s) de um enunciado não pode ser considerada ou dada independentemente de sua enunciação e, na composição literária a produção de sentidos pelo leitor não passa tão somente pela apreensão semântica, mas por toda uma relação que ele pode estabelecer com a produção e intenção do trabalho artístico – a enunciação – geradora de muitos sentidos complementares aos sentidos semânticos.
Para Michel Pêcheux (1988), o discurso não se constitui unicamente como o conjunto de enunciados e suas conceituações, mas como o “complexo com dominantes” que inclui os enunciados, um conjunto de “ditos” e “não-ditos” e, ainda, toda uma alusão ao pré-construído, podendo ser trespassado por um discurso transverso ou certos encaixes, produzindo diferentes efeitos de sentido e filiando-se a singulares formações discursivas e conseqüentes formações ideológicas . Assim, o discurso encontra-se em relação direta com as proposições do intradiscurso – o funcionamento do discurso com relação a si mesmo, possibilitado pelo conjunto dos fenômenos de co-referência – e, ainda com o interdiscurso, enquanto pré-construído.
Para o teórico, o intradiscurso instaura no discurso uma relação de temporalidade em relação a ele mesmo, no conjunto dos fenômenos de co-referência, enquanto o interdiscurso instaura no funcionamento do discurso uma relação com o “já-dito”, ou seja, uma relação com o pré-construído, extra-textual, ou seja, contextual. Assim, o interdiscurso pode tanto confirmar o já-dito quanto estabelecer uma relação de contraposição a determinado pré-construído. A contestação formal do pré-construído normalmente encontra-se carregada de tensão, tanto no interior dos enunciados do objeto que o contesta quanto na relação que estabelece com o contexto em que é veiculado.
O enunciado, ao permanecer associado ao seu contexto de produção – mesmo que trate, no objeto literário, de um outro contexto que dele esteja muito afastado no tempo e no espaço, ou que lhe seja absolutamente estranho na produção do texto artístico – como o texto da História -, é capaz de explicar a(s) opção(ões) do enunciador (escritor) pela produção de tal e qual forma de expressão utilizada no texto; e, ainda, pela posição ideológica no discurso, que será capaz de gerar “efeitos de sentido” , um paratexto verbal (imagético, oral ou escrito) que inclui suas opções por certas formações discursivas, ao remetê-las a certas formações ideológicas situadas, geralmente, no paratexto oral, escrito, imagético, etc..
Segundo Pêcheux (1988, p. 169), “a ideologia estética da criação e a recriação pela leitura – correlativa da criação – encontram, também elas, sua origem naquilo que chamamos forma-sujeito, mascarando a materialidade da produção estética”.
A definição do conceito de discurso tem se resumido, muitas vezes, ao conjunto de significantes e significados, enquanto toda uma relação paratextual termina, muitas vezes, por ser deixada à margem da conceituação de discurso, como se este se bastasse, no círculo do enunciado e sua significação; como se o discurso se referisse unicamente à área da língua falada, como se o texto escrito não integrasse em seu conjunto discursivo os aspectos contextuais e, assim, fosse possível abstrair da obra de arte a sua situação de produção. A resposta muitas vezes a essas observações se apóia no pressuposto de que a obra de arte já traria em seu bojo o contexto histórico de onde advém. No entanto, essa hipótese teórica nem sempre se mostra adequada. O objeto literário tem tanto a dizer sobre o contexto que o produziu quanto sobre as formações ideológicas teóricas, ou práticas, oriundas desse contexto.

3.3.O sujeito do discurso

A tomada de posição do sujeito não é concebível como um ato originário do sujeito falante, pelo contrário, esse posicionamento deve ser compreendido como o efeito na forma-sujeito da determinação do interdiscurso como discurso transverso , isto é, o efeito da exterioridade do real ideológico-discursivo, na medida em que a exterioridade se volta sobre si mesma para se atravessar. Nesse sentido, a tomada de posição resulta de um retorno ao Sujeito no sujeito, de modo que a não-coincidência subjetiva é que caracteriza a dualidade existente entre sujeito e objeto. É por essa dualidade que o sujeito enunciador pode se separar daquilo que ele “toma consciência” e a propósito do que ele toma posição. (PÊCHEUX, 1988, p. 171-2)
No texto literário, a ficção permite que não haja uma coincidência exata entre o sujeito do dizer (o enunciador autor) e o sujeito do dito (o sujeito do enunciado) – narrador ou personagem – ou até certos “autores intrusos”. Como fingidor que é o sujeito enunciador, ou autor, pode criar inúmeros outros “sujeitos do dito” - os seus narradores e personagens –, fazendo com que a relação de coincidência e não-coincidência, entre o dizer e o dito, encontre-se em níveis diferentes de simetria e assimetria. Por isso, o conjunto de enunciados pode veicular formas de pensar e perspectivas ideológicas bastante diferenciadas, ou não.
Sob esse viés, é possível perceber que entre o que pensa o autor e o que diz, e entre e o que pensam e dizem seus sujeitos dos enunciados - narradores e personagens -, n relações são detectadas entre a coincidência e/ou a dissidência, nas simetrias e assimetrias. No entanto, certas focalizações empreendidas pelo narrador, assim como a construção de determinados enunciados e o “tom” (o sério, o cômico, o questionamento, etc.) do discurso podem indicar uma sutil tomada de posição do narrador e, algumas vezes, do próprio autor.
O que Theodor W. Adorno (2006, p. 96) entende por transcendência necessária à obra de arte, sem a qual ela perde seu caráter artístico, é o “seu discurso ou a sua escrita, mas uma escrita sem significação ou, mais exatamente, com uma significação truncada ou velada”. Sob essa ótica, é preciso verificar que, na “escrita velada” à qual se refere Adorno, pode ser encontrada o discurso atravessado pelo pré-construído e pelo não-dito, ou então, pela contradiscursividade, de tal maneira que possam encontrar-se ambos, como formações ideológicas que necessariamente podem ser desveladas pelo paratexto em um processo de análise e síntese das formações ideológicas.

3.4. A verdade e a verossimilhança

Um ato de linguagem, ou seja, um enunciado não pode ser classificado exclusivamente como “verdadeiro” ou “falso”, principalmente no interior de uma obra de arte, mas como “bem sucedido” ou “mal sucedido”. Isto porque a questão da verdade encontra-se diretamente relacionada à natureza da afirmação ou do enunciado (Eagleton, 2005, p. 147-8). E, ainda, ao gênero do texto ou discurso. O que se enuncia pode ser questionado em termos lógicos, filosóficos, sociais ou lingüísticos e, ainda, paralingüísticos ou pragmáticos.
A natureza da verdade, dependendo do enunciado, pode ainda ser relativa ou relativizada em relação a diferentes referentes, emissores ou receptores desse enunciado e, no caso do texto literário, em relação aos autores, leitores e ao próprio assunto em sua forma e conteúdo. É esse pressuposto que parece ter diferenciado o texto literário, inclusive o eu lírico ou poético no poema: a construção de sujeitos enunciadores que representam um discurso que não necessita ser coincidente com a posição da voz autoral.
É certo que quaisquer pessoas podem escrever, em termos literários, a composição que quiserem, geralmente onde quiserem, produzindo assim certos discursos que expressem suas opiniões. No entanto, esse texto não poderá ser exposto em qualquer lugar e, para que se torne “bem sucedido”, ou seja, possa tornar-se conhecido e aceito pelo público, tenha leitores, encontrar-se-á submetido a uma série de formalidades impostas pelo(s) sistema(s) em determinado(s) local(is) e tempo histórico(s) diversos. Daí a constatação de Terry Eagleton (2001, p. 30) da ligação entre a literatura e a ideologia. E, por essa forma de disseminação, via instituições públicas (órgãos de divulgação ligados ao sistema) ou privadas (editoras, gráficas, jornais, revistas, e outros meios de publicação) que os enunciados tornam-se canônicos entre os outros enunciados “já ditos”.
Isto significa dizer que muitas “verdades” enunciadas verbalmente ou mesmo escritas foram enterradas ou queimadas, juntamente com seus enunciadores. No âmbito das ciências, as teses de Copérnico e os escritos de Giordano Bruno se encontraram “mal sucedidos” por muito tempo. É que seus “discursos” eram integrados por grande quantidade de “não-ditos” articulados como contradiscursividade em relação ao pré-construído da ideologia dominante naquele momento histórico. E o próprio Copérnico tinha consciência disso. Tanto que deixou claro que a Igreja da época não aceitaria suas teorias, pois elas “contrariavam” idéias sedimentadas. Ele quis dizer que seu discurso científico era “contrário” às idéias sedimentadas dos que possuíam o poder. Era uma ruptura teórica, pautada na realidade observada.
Na contemporaneidade há uma tendência em fazer "desmanchar no ar" os pressupostos teóricos das narrativas marxistas, a partir da alegação de que teriam sido usados somente no sentido de sua apropriação para a implantação das chamadas "ditaduras do proletariado" e seus sistemas econômicos correspondentes, senão fracassados, colocados "fora de questão" (JAMESON, 2005), já a partir da década de 80 do século XX. Assim, também, outros textos modernistas têm sido “rotulados” como totalitários e imperialistas, portanto, “mal sucedidos” na atual conjuntura econômica. Mas o discurso marxista também se organizou como uma ruptura teórica, pautada exclusivamente na realidade observada.
Essas atitudes dos estudiosos implicam uma impropriedade e generalização em termos teóricos e uma facilitação à desconexão entre os sistemas econômicos e o pensamento teórico dele proveniente, tendo em vista que parte considerável dos estudos do presente e do futuro passa a se organizar a partir de uma relação das produções culturais não mais em correspondência com a infraestrutura geradora dos meios de vida, mas com a superestrutura correspondente.
Jameson, ao tratar ironicamente da vitória dos defensores do livre-mercado e sua apropriação dos termos 'moderno' e 'modernidade' para ilustrar o conceito de pós-moderno, desvela como os vitoriosos se apropriam desses termos básicos para atribuir-lhes valores contraditórios aos originais, para que se alinhem à ideologia de mercado:

Se as posições de livre-mercado podem ser sistematicamente identificadas com a modernidade, e tidas habitualmente representando o que é moderno, então os defensores do livre-mercado obtiveram uma vitória fundamental que vai muito além das velhas vitórias ideológicas. Chamar isso de vitória da mídia é subestimar o deslocamento hoje em dia da luta política para a linguagem e a terminologia. O importante é que os defensores da posição oposta não têm para onde ir, em termos terminológicos. Os adversários do livre-mercado, como os socialistas, só podem ser classificados na categoria negativa ou privativa do não-moderno, de tradicionalista ou mesmo, mais recentemente – já que eles nitidamente resistem ao progresso e à modernidade –, de "linha-dura". (JAMESON, 2005, p. 19) (grifos nossos)

Observa-se, então, que os que controlam o poder e os meios são capazes de apropriar-se de expressões, como o termo “moderno”, e a “modernidade”, como significantes para nomear certa passividade em relação a formas econômicas , por exemplo, em benefício próprio; e os significados dos conceitos podem ser apropriados por um ou outro grupo ou classe em seu próprio favor, na tentativa de consolidar um discurso "bem sucedido". Representa a vitória da linguagem, pela força dos discursos dominantes.
Dessa forma, parece claro que os enunciados que reconhecemos como resultados e resultantes do acúmulo de conhecimentos, desde os mais importantes e fundamentais até os que aparentam não conter qualquer mensagem mais importante, na contemporaneidade mesmo, constituem o resultado de uma “filtragem” sócio-ideológica.
Essa constatação nos obriga a reconhecer que o ato de veiculação da linguagem (oral ou escrita), neste caso, pode ser pertinente ou não, legítimo ou não. Assim, as Instituições sempre regularam e regulamentaram o exercício do discurso durante toda a História. É certo que, vez ou outra, ao longo da História, certos grupos que não se ligavam a instituições oficiais, ordens ou associação de quaisquer tipos, procuraram veicular enunciados opostos ou divergentes desses valores institucionais sem, no entanto, obterem um discurso “bem sucedido”, geralmente. É certo que raros desses textos sobreviveram, enquanto a maioria desapareceu, a exemplo dos escritos sobre as religiões extáticas na Europa, dominadas por um discurso essencialmente feminino, ou o livro teórico sobre as Sátiras, de Aristóteles.
Durante grande parte da História, enquanto o discurso veiculado centrava sua força maior na oralidade - divulgado pelas Instituições: Igrejas, Confrarias, Associações, etc –, a escrita manteve-se uma espécie de código sagrado, acessível somente a alguns, geralmente detentores de grande poder, a exemplo do Papiro de Ani, dos egípcios, ou as tábuas da Lei, de Moisés, as epopéias dos lembas da África do Sul, estão entre alguns exemplos que veiculam as normas para o espírito e o grupo social. Outros discursos, no entanto, permaneciam “fora do centro” ou “afastados do centro” por se encontrarem ilegitimados ou ilegítimos, sobrevivendo em sociedades secretas, grupos culturais minoritários ou desconhecidos do Ocidente, religiões extáticas, etc. Esses, muitas vezes, os discursos que se opõem aos discursos dominantes.
No espaço do pensamento africano, em que apenas a minoria dos integrantes das sociedades é detentora da tecnologia da escrita, as formas da história e da literatura permanecem guardadas no arsenal da memória e da oralidade; e, especificamente, nos territórios que mais tarde viriam a integrar Angola, essas formas orais se encontram em gêneros como a maka, o missosso, a ma-lunda ou o mi-sendu. (ERVEDOSA, s/d, p. 8-9). É preciso enfatizar que nesses textos orais se encontram também os modos de vida e a preservação dos valores das sociedades comunitárias, alguns deles reservados exclusivamente ao círculo de poder da sociedade.
Segundo Luís Kandjimbo "a poesia, a narrativa curta, o conto, a narrativa genealógica e retórica são gêneros mais antigos que encontramos nas literaturas orais dos povos angolanos" [grifo nosso], enquanto em Portugal, muitas das cantigas que marcam o início da literatura galego-portuguesa têm suas bases no canto dos jograis e trovadores, sendo registradas em momento posterior, assim como as gestas.
Nos diferentes lugares do mundo, enquanto alguns permaneceram utilizando apenas a oralidade, outros enunciadores de textos orais [oratura ou oralitura] terminaram por encontrar formas de registro permanentes em paredes, pedras, tábuas, peças de couro, papiros, papéis, cordas, etc. que, pouco a pouco, evoluíram para outras formas. O controle dessas técnicas e/ou instrumentos disponibilizados para o registro escrito encontrava-se, geralmente, sob o poder institucional, geralmente, representantes do Estado e das ordens religiosas –, e suas variações. Alguns registros estiveram sob o controle de um único representante que detinha o controle de todos os poderes e dosava a veiculação do discurso, como os primeiros livros do Velho Testamento e outros registros religiosos tanto no Ocidente quanto no Oriente.

3.5. O lugar social do sujeito enunciador


Proferir um ato de linguagem, seja ela oral ou escrita, define necessariamente uma relação de “lugares sociais” de ambas as partes, uma solicitação de reconhecimento do lugar de pertença que é atribuído a cada um, em seus papéis sociais. A linguagem assim organizada traz implícita uma hierarquia embasada na relação estabelecida pelo sistema social que, por sua vez, se estrutura sobre o mesmo modo de relações imposto pelo sistema econômico. Nas relações de forças no interior do sistema de produção e distribuição de bens materiais e culturais, a maior ou menor importância de uma fala encontra-se diretamente relacionada a uma hierarquia. E, nesse caso, a literatura não foge à regra. A figura do autor, sua importância, a crítica que é tecida sobre sua produção, as polêmicas que geram suas criações na sociedade são capazes de garantir-lhe um “lugar social”, que pode ou não ser mais ou menos contemplado pela maioria dos consumidores de seus produtos.
“Quem sou eu, que lugar ocupo para que eu fale (escreva) dessa maneira?, “Quem é ele, que lugar ocupa para que fale (escreva) desse modo?”, “Quem ele se considera no sistema imposto para falar (escrever) dessa maneira?”, etc. são questionamentos fundamentais que se organizam em torno da emissão de uma fala ou de um texto, ou seja, de um ato de linguagem. Já Sartre, no século XX, atenta para a importância do escritor e do ato de escrever, certo da importância da divulgação de idéias por meio da literatura no interior da sociedade.
Em última instância, aqui se encontra também a questão da identidade. “Quem sou eu?”, “Quem é ele?”, o “Eu e o Outro ”, o “Eu e o outro ”, “O que tenho a dizer interessa tanto?”, “O que tenho a ouvir que possa interessar tanto?”. Por isso, a relação de falas que o narrador estabelece, a focalização e as falas das personagens na obra literária, trazem implícitas as formas de relações que se estabelecem no contexto que a obra pretende abordar ou aborda.
É, portanto, na escolha e distribuição do significante e, principalmente, dos conceitos a que remete, ou seja, na criação estética, que se encontram os interstícios do discurso, e suas tensões. O estatuto lógico do discurso da ficção não corresponde às condições de êxito de uma asserção pautada no real, pois o enunciador (narrador ou personagem) não precisa se comprometer ou responder pela “verdade” de seus dizeres, porque atende a uma "convenção de ficcionalidade", pois uma das singularidades do discurso literário é tornar problemática a própria noção de enunciador/narrador, de dissociar o narrador das representações do autor que a instituição literária pretende definir.
As asserções fingidas do autor em seus atos declarativos confirmam ou contestam, modificam ou modelam certa realidade que se encontra ali plasmada, e procura refletir, no contexto, suas essências discursivas, de maneira que o leitor, ou co-enunciador possa reformular conceitos. O texto ficcional e seu discurso instituem-se como um universo reflexivo que narrador e personagens por certo representam.

3.6. O lugar do co-enunciador: o leitor e o discurso


O leitor, então, funciona como co-enunciador, o qual enuncia a partir de sua competência de leitura, organizando um outro texto, mental, cuja rede total constitui a tessitura da obra. A história contada pelo narrador ganha forma de linguagem e conceito e aparece através de sua decifração, significação e ressignificação pelo ato de leitura, ou seja, por meio do leitor. Assim, o processo narrativo torna dupla a leitura; e, dessa forma, qualquer recorte da narrativa coincide com um recorte na leitura.
É também por isso que os “índices lacunares”, ou seja, aqueles espaços que na narrativa parecem “vazios” ou pouco determinados são preenchidos por todo um universo imaginário do leitor. A reconstrução das cadeias anafóricas, a identificação das personagens, a capacidade de assinalar os pressupostos, de articular os subentendidos, e perceber outros implícitos são responsabilidade do leitor. Nessa atividade de decifração e identificação, ou seja, no jogo de compreensão e reflexão sobre a criação, a bagagem de conhecimentos e estratégias do leitor é acionada o tempo todo; há uma constante recorrência ao pré-construído e, ainda, à originalidade da interpretação. De acordo com Suely Flory (1994, p. 7-8), o leitor organiza “projeções representativas” e através delas e da “estrutura de apelo do texto” ocupa os “brancos” do texto, os “vazios”, o “não-dito”.
Por essa razão, as referências à historiografia, pela articulação de um conjunto de enunciados parafrásticos ou estilizados da história oficial, ou de um conjunto de enunciados ficcionais em torno da história oficial, às vezes deslocando seus fatos - que alguns críticos chamam de falácias históricas – prevêm relações conflitantes no texto histórico-ficcional. No entanto, nessa articulação, o que importa de fato é a referência ao pré-construído, que remete o leitor tanto à dúvida quanto ao esclarecimento dos fatos. E, no romance histórico de sentido lukácsiano , ou no novo romance histórico, teorizado por Menton , pretende remetê-lo finalmente ao sentido da História. Um sentido talvez elidido do universo modernista.
Mesmo a coerência não necessita obrigatoriamente integrar o texto, pois pode ser “lida” através dele, ou seja, buscada, restituída e garantida pela atividade do leitor. Esse papel do leitor se aplica, é claro, aos gêneros lidos “em silêncio”, e não aos gêneros que se dirigem aos conjuntos de espectadores como a comédia, o sermão, o canto épico, a tragédia, etc. que, embora possam ser objetos de leitura silenciosa, não foram produzidos especificamente para essa finalidade.
Pode-se falar em um “leitor invocado”, quando o narrador ou o autor a ele se dirige no próprio texto, ou a um “leitor instituído”, este como instância que a própria enunciação do texto implica e que o próprio gênero parece determinar de forma mais ou menos implícita. O objeto literário normalmente pressupõe certo leitor e, dessa maneira, o romance do século XVII não visa o mesmo leitor que o romance modernista.
Assim, o vocabulário utilizado, as relações interdiscursivas (que mantém relações com os discursos de outras obras), a inscrição no código da linguagem (português erudito, português informal ou popular, rural, marginal, português angolano, etc.) pode supor características muito diferenciadas entre os seus leitores.
Assim, quem são os leitores dos novos romances históricos dos autores Saramago e Pepetela? Os leitores de final do século XX e início do XXI, presumindo-se que possuam certas habilidades de leitura. Não se pode afirmar que sejam exclusivamente de língua portuguesa, tendo em vista a tradução dos dois romances para diferentes partes do mundo e, principalmente, em várias línguas. Mas, alguns detalhes de seus objetos podem ser avaliados, como o tipo de português utilizado, a constituição dos discursos, a relação com a instância do narrador e outros implícitos que só podem ser encontrados no referente discursivo “fora” do objeto, no contexto, mas associado ao objeto em seu momento de produção.
Assim, este trabalho trata de tirar do texto não somente o que ele diz, mas principalmente, o que ele pressupõe, o que promete, implica ou deixa implícito, o que ele deixa subentender, de forma a preencher os espaços vazios, a ligar o que existe no texto com o que se encontra no pré-construído textual ou oral, ou seja, visualizar o processo de interdiscursividade, sua origem e suas fusões, de forma a estabelecer um macroato de linguagem.
No entanto, muitos textos contêm em si mesmos certas “chaves” para sua decifração, instituem um contrato privado no interior de um conjunto de convenções que poderiam talvez ser contestadas, a exemplo dos textos em que o modo maravilhoso predomina: as fábulas e outros textos, inclusive romances, e, outros ainda, cujas convenções encontram-se sujeitas a certos grupos de leitores, a exemplo dos textos fantásticos, sujeitos aos próprios sistemas de pensamento e crenças de seus leitores nos diferentes contextos.
Quanto à ficção historiográfica ou ao novo romance histórico, o que nestes se encontra no espaço da imaginação - como formações discursivas específicas, no campo de realidades possíveis ou maravilhosas -, o quesito da realidade possui uma dimensão que não pode ser questionada também no contexto do real, dado o afastamento temporal dos acontecimentos e o processo de “descontextualização” da produção escrita em um momento histórico bastante afastado do tempo da diegese. Por isso, suas formações discursivas reportam-se a um pré-construído textual e, muitas vezes, oral, que pode ser confirmado e/ou contestado.
A compreensão dos textos requer dados extraídos de vários níveis discursivos e do próprio contexto de produção, e está sujeita, ainda, às crenças e a outros desígnios variáveis, de acordo com os sujeitos leitores. Esta abordagem pelo viés dos discursos entremeados nos textos é, portanto, de expansão, uma vez que o texto implica em indicações esparsas que exigem uma cooperação interpretativa, mas necessita ser sempre contrabalançado por restrições possíveis.
Na construção da obra literária, os termos escolhidos na seleção lexical apontam para uma constelação de significados ou de unidades semânticas, traçando rumos metonímicos que permitem inferências falsas ou pertinentes, no conjunto metonímico possível. A estrutura hierárquica dos termos vocabulares aciona uma rede de sentidos. Essas estruturas remetem o leitor a certas determinações espaciais e temporais. Nessas determinações encontram-se inclusos o momento e o espaço em que se situa o co-enunciador do texto, ou seja, o leitor, que pode associá-lo ao seu sentido mais imediato ou mais pronunciadamente vivido em sua práxis.
O emprego de um vocábulo ou um conjunto de palavras pode ser suficiente para fazer emergir todo um contexto sócio-político-cultural ao qual se encontra associado, assim como evocar toda uma tradição no interior do próprio texto em que se encontra aplicado. Um exemplo da emergência desses sentidos e ideologias pode ser visto pela expressão “luta de classes”.
O processo de leitura empregado nesse trabalho consistiu em compreender na obra o sistema de “dobras”, a análise por meio da decomposição dos conjuntos discursivos, a partir de certos grupos significantes e a catálise através da qual é possível engendrar as ideologias circunvizinhas à tutoria de uma palavra.
Por isso, a identificação de roteiros de leitura nos dois textos permitiu a definição de contextos que integram o texto em encadeamentos coerentes. Dessa forma, foram ativados vários roteiros contextuais e históricos apropriados “fora” do texto, ou no paratexto, como justificativas “anafóricas”, como o lugar, as funções, as propriedades, as relações entre personagens e delas com o narrador, as posições na hierarquia, bem como suas inversões em relação ao contexto dos períodos históricos abordados e os de produção dos romances e, também, a questão dos gêneros.

3.7. O discurso e os gêneros

Na Antigüidade, a invariabilidade ou a pouca flexibilidade das formas de poder e da fixidez das instituições como “paratexto” estatal determinaram a invariabilidade das formas da arte (as pinturas, os relevos e os papiros). Isso não significa que pequenas variações não ocorressem, mas nada de muito considerável, tendo em vista a manutenção do sistema material de produção e reprodução de poder.
A proliferação de formas, ao longo da história, acabou por determinar os gêneros, que, fundindo-se a outros, transformaram-se . Mas o gênero não se prende unicamente à forma, antes, encontra-se relacionado ao conteúdo e a outros fatores internos. Ocorre que, em muitos períodos históricos, alguns gêneros parecem dominantes em determinadas épocas, seja no interior de certas formas da arte, ou como natureza da arte mesmo. Assim, em determinado momento, a pintura pode ser a dominante, juntamente com a escultura, a exemplo das culturas grega e romana, em outros, a pintura pode assumir uma posição mais dominante, como na Itália Renascentista, a ponto mesmo de influenciar as outras artes.
Convém lembrar que a literatura como tal já aparece não em função da escrita oficial, mas a partir da tradição oral, ou seja, os primeiros textos literários de que temos notícia tratam de registrar as histórias e suas formas orais que já circulavam entre os povos: estórias contadas ou cantadas em versos. As marcas da oralidade se encontram nos livros do Velho Testamento, na Ilíada, na Odisséia, e retratam os modos de vida e as crenças de um povo. Mas é a partir de seus registros escritos que se tornam formais e institucionais. Desde seu princípio, na Bíblia, os gêneros também se tornam definidos: Cantares, Provérbios, Salmos onde já se encontram os discursos: lírico, erótico, o moralizante, o jurídico, os laudatórios, etc.
Assim, pelo reconhecimento dos gêneros dos discursos pode-se captar um “macroato” de linguagem que se encontra em jogo nos textos mais longos, como em certos gêneros literários. Se o gênero é, por exemplo, um provérbio, o leitor, ao reconhecê-lo, perceberá que o enunciador não fala em seu nome, mas em nome da sabedoria ou cultura de um povo, uma nação, um grupo social. Assim, também ocorre com as fábulas e lendas, os contos populares e, ainda, algumas epopéias que possuem origem na oralidade. De acordo com Bakhtin:

Todos estes gêneros [básicos], ou em todo caso, os seus elementos principais, são bem mais velhos do que a escritura e o livro. Ainda conservam nos dias de hoje, em maior ou menor grau, sua antiga natureza oral ou declamatória. Ao lado dos grandes gêneros [a epopéia, a tragédia, etc.], só o romance é mais jovem do que a escritura e os livros, e só ele está organicamente adaptado às novas formas de percepção silenciosa, ou seja, à leitura. Mas o principal é que o romance não tem o cânone dos outros gêneros: historicamente são válidas apenas espécies isoladas de romance, mas não um cânone do romance como tal. (BAKHTIN, 1988, p. 397)

Segundo o teórico, o romance é o gênero nascido e sustentado pela era moderna da história mundial e, por essa característica, profundamente ligado a ela, levou - no período clássico dos gregos, no século de ouro da literatura romana, na época do classicismo – uma existência não oficial, fora dos limites da grande literatura e, no período de sua formação destaca-se o seu caráter crítico e "autocrítico", ou seja, como gênero que desenrola não apenas uma crítica, mas também uma parodização sistemática ou travestida das principais variantes de gênero.
O gênero literário influencia efetivamente na definição dos roteiros de leitura, de tal maneira que um romance histórico já possui certas prerrogativas instituídas anteriormente e aguardadas pelo leitor. No novo romance histórico, especificamente nos objetos de estudo desta tese, algumas dessas características encontram-se reinventadas esteticamente, o que não invalida alguns roteiros já hipotetizados.

3.8. Isotopias

A determinação dos roteiros de leitura implica obrigatoriamente em um levantamento dos tópicos, ou seja, do que se trata neste ou naquele texto, desvelando suas isotopias, válidas tanto no conjunto da obra como no nível mais elementar e diferenciando as isotopias figurativas - as que se encontram mais próximas das múltiplas manifestações da cultura - das isotopias temáticas - mais profundas e abstratas, remetem a uma abstração tanto para o interior quanto para o exterior do texto.
Nos textos de Saramago e Pepetela, no entanto, não se pode encontrar um percurso de leitura linear que elimine virtualidades semânticas; antes não se configuram como portadores de uma única isotopia, mas contituem-se em escritas cujos processos com retornos, antecipações, sobreposições se encarregam de dificultar o resumo de seus tópicos. São, portanto, textos poliisotópicos, cujo tópico não se constitui como nenhuma das isotopias isoladas, mas como interação de todas elas.


Memorial do Convento A gloriosa família: o tempo dos flamengos


3.8.1. Isotopias temáticas:

As relações no Palácio As relações no Palácio dos Governadores
A vida nos mosteiros A vida dos clérigos
As crenças profanas As crenças locais
O maravilhoso cristão O maravilhoso "pagão"
A passividade do povo pela fé Os conflitos entre os grupos
As crenças das mulheres A liberdade de certas mulheres
O poder patriarcal O poder patriarcal
As precárias relações de trabalho As relações de servidão
A situação da ciência no período A descaso com a ciência no período
A exclusão na construção da identidade A inclusão na construção da identidade
A produção material dos bens A produção material dos bens

3.8.2. Isotopias figurativas:

A ironia do narrador A ironia do narrador
A metáfora da mão esquerda A metáfora dos nenúfares
A analogia com o momento de produção A analogia com o momento de produção
A alegoria do pensamento monológico A alegoria do mercado globalizado
A utopia da passarola A utopia da liberdade de expressão
As simbologias das fogueiras As simbologias das fogueiras

3.8.3. Isotopias discursivas:

As formações discursivas humanistas As formações discursivas nacionalistas
A ideologia da religião As ideologias das religiões
As formações ideológicas marxistas As formações ideológicas multiculturais
As construções dialéticas no intradiscurso As construções dialéticas no intradiscurso
A dialética do cômico e do sério A dialética do cômico e do sério
As categorias da carnavalização As categorias da carnavalização
Os enunciados críticos ao Sujeito do Império Os enunciados críticos ao Sujeito do Império
Os enunciados críticos ao Colonialismo Os enunciados críticos ao Colonialismo
Os enunciados críticos ao Monopólio Os enunciados críticos ao Monopólio
Os enunciados críticos ao Luxo e à Luxúria Os enunciados críticos às transnacionais


Procurou-se enumerar algumas das temáticas presentes nos romances, bem como algumas isotopias figurativas (embora possa existir outras), e a inclusão das isotopias discursivas – conceito que elaboramos a partir dos estudos de Mangueneau e Michel Pêcheux para indicar o que há de comum e recorrente em cada um dos romances no que diz respeito aos discursos – com o objetivo de especificar o terceiro nível de interpretação do texto, ou seja, de detectar as formações discursivas e vinculá-las às suas correspondentes formações ideológicas no espaço do pré-construído.
Normalmente, uma abordagem relativamente segura para textos com grande número de isotopias é a que se baseia em roteiros intertextuais: os gêneros. Os gêneros também se constituem como roteiros intertextuais. Por essa razão, a opção por determinar o gênero a que pertence o romance constitui uma das problemáticas desta tese, cuja teoria será discutida em relação ao conjunto discursivo que integra sua composição em um momento posterior.
É importante observar que, nos dois textos, há recorrência à crítica ao colonialismo, ao sujeito do Império, assim como ao Monopólio, base do Imperialismo. Além disso, ambos os textos tratam da questão da identidade, seja pela exclusão ou pela inclusão. Essas recorrências indicam um viés explícito da crítica pós-colonial.

3.9. Inferências: Os pressupostos e subentendidos

O discurso dispõe de todo um arsenal de recursos argumentativos que a Retórica tentou codificar. Estes representam apenas uma parte dos elementos que a argumentação pode mobilizar. No discurso, a tendência ao interesses de palavras “plenas”, costuma relegar à parte unidades como os conectores. Esses, no entanto, são elementos essenciais na percussão da linguagem. Eles possuem dupla função: vinculam unidades semânticas e conferem papel argumentativo às unidades que relacionam. Mas a função essencial desses conectores é a vinculação dos enunciados. O típico desses conectores lingüísticos, diferente dos lógicos, é o de poder ligar entidades heterogêneas: um enunciado e uma enunciação, um fato extralingüístico e um enunciado, um elemento implícito e um explícito, etc.
Numa obra, os elementos implícitos devem necessariamente considerar dois níveis de interpretação: o porta-voz, ou seja, a personagem escolhida pelo autor para proferir certos enunciados indicando que os implícitos dela são os mesmos que seriam proferidos pelo autor, ou que se constituem como uma crítica exatamente a essa forma de pensamento. E, ainda, aquelas às quais o autor aparenta manter certa neutralidade de opinião.
É, então, que se depara com uma polifonia desestabilizadora, a partir do momento em que o leitor (co-enunciador) se questiona a quem pertencem esses implícitos, já que parece estabelecido que é da essência do discurso literário assimetria ideológica, ou seja, a não-coincidência exata entre narrador e escritor, personagem e escritor. A obra literária, dada sua característica de literariedade, é essencialmente uma constante busca dos implícitos nos enunciados. Dessa maneira, a partir das leituras, é possível admitir que certos textos como “alegóricos”, “simbólicos” ou “metafóricos”, “parabólicos”, fantásticos, maravilhosos, mágico-realistas, animistas, etc. isto é, que indicam ao leitor a necessidade de perseguir os implícitos e subentendidos a fim de serem compreendidos.
Entre os implícitos encontram-se os pressupostos e os subentendidos. Enquanto os primeiros são estáveis e se encontram no nível do enunciado, podendo ser detectados mais facilmente, os segundos são inferidos de um contexto singular e suas existências podem ser incertas, encontrando-se na instância da enunciação. Enquanto o pressuposto pode ser detectado por um bom falante de português, a decifração do subentendido é mais aleatória e seu número é aberto por definição.
Assim, o subentendido figura ao lado da competência lingüística e do conhecimento das leis do discurso, necessária à decifração dos implícitos. Certo conhecimento “enciclopédico”, como conhecer as convenções de um gênero literário ou dos costumes de determinadas sociedades, são alguns dos saberes que ajudam na localização dos subentendidos.
Para O. Ducrot enquanto o “posto” é assumido pelo enunciador (narrador ou personagem), o pressuposto é garantido por uma outra instância, um sujeito indefinido, que podemos entender como o “Outro” enunciador, que pode incluir, também, a figura do autor ou do narrador que se pretende imparcial. O subentendido, encontra-se, geralmente no discurso do pré-construído ou em um “não-dito” absolutamente original.
Embora a norma seja de que o pressuposto se encontra pré-construído ao enunciado, não se garante o seu uso efetivo como uma proposição supostamente admitida por todos ou evidente. A disparidade entre os saberes do enunciador e do co-enunciador (leitor) tem uma vantagem: graças aos pressupostos, tem acesso a um saber do qual era desprovido, para além do enunciado, ou seja, do “posto” ou “dito”.
Em Pepetela e Saramago a busca dos implícitos se torna essencial, tendo em vista que ambos os trabalhos assinalam ou apontam para uma constelação de sentidos muito além dos conteúdos literais ou dos relacionados às figuras. Entre os implícitos mais evidentes, encontram-se outros, de caráter quase que absolutamente ocultos e que só podem ser vistos a partir da definição das isotopias.
Pressupostos e subentendidos permitem que os enunciadores digam sem dizer, adiantem um conteúdo sem assumir completamente sua responsabilidade. No caso do pressuposto, existe um recuamento desse conteúdo; no do subentendido, trata-se de uma espécie de adivinhação colocada ao co-enunciador. Ele deve derivar de proposições baseando-se nos princípios gerais que regem a utilização da linguagem.
Os subentendidos não são, portanto, passíveis de predição fora de contexto; de acordo com o contexto a mesma frase poderá liberar subentendidos bastante diferentes. É principalmente por meio dos subentendidos que se encontra possível a localização das origens ideológicas das formações discursivas que determinam os enunciados, de maneira que não necessariamente se encontram expostas no texto, mas o enunciados remetem o leitor a elas. Assim, é possível determinar seu conteúdo ideológico.
Importante é ressaltar as diferenças entre os tropos e os subentendidos, apesar de sua grande proximidade, pois segundo Mangueneau (2006, p. 111-3), ao avaliar as interpretações de Wilson e Sperber sobre os trabalhos de Paul Grice (que considera os tropos como subentendidos), se um enunciado viola uma máxima do discurso e obriga à busca de um sentido derivado, obrigatoriamente suscita um trabalho do imaginário, cujo valor interpretativo resulta das redes micro-contextuais e macro-contextuais, das quais o enunciado participa. Além disso, a força de um tropo pode ser precisamente a de manter suspenso o significado, de não se fixar nem no sentido literal, nem no sentido derivado.
O discurso histórico no texto ficcional pode funcionar como um implícito, mas também pode se encontrar como um subentendido, embora nos romances históricos e novos romances históricos haja uma tendência a torná-lo explícito. Mas não se trata de uma regra. Tantas vezes, as alusões à história obrigam o leitor a buscar “fora” do texto, ou seja, no discurso do “já-dito” da historiografia oficial o que se encontra implícito no texto ficcional. Outras vezes, encontra-se como implícito, de maneira que é preciso arrancar seu sentido do enunciado.
Outras vezes, ainda, o sentido pleno da historiografia encontra-se no próprio intradiscurso da ficção, que exige deduções, cálculos, idas e vindas no texto para que o sentido seja plenamente considerado pelo leitor.

3.10. Os romances e o discurso

A subversão das regras de dominação (entre Bartolomeu Lourenço, de Memorial do Convento, por exemplo) coincide performaticamente com as regras do discurso pronunciado, ou seja, o sujeito mostra a subversão contra o poder no próprio ato discursivo. Ele não atende mais ao discurso da Igreja na mesma medida em que transgride esse discurso, juntamente com as regras de hierarquia. Ele, o padre, a ouvir leigos sobre teologia e a discutir com estes sobre religião. Ele também, como o narrador, lembra ao leitor que o poder se concentra também no "poder de dizer". Pois, segundo o narrador, no sermão, ele “dizia as palavras que escrevera, outras que de improviso lhe surgiam agora, e estas negavam aquelas, ou duvidavam-nas, ou faziam-nas exprimir sentidos diferentes”:

Et ego in illo, sim, e eu estou nele, eu Deus, nele homem, em mim, que sou homem, estás tu, que Deus és, Deus cabe dentro do homem, mas como pode Deus caber no homem se é imenso Deus e o homem tão pequena parte das suas criaturas, a resposta é que fica Deus no homem pelo sacramento, claro está, claríssimo é, mas ficando no homem pelo sacramento, é preciso que o homem o tome, e assim Deus não fica no homem quando quer, mas quando o homem o deseja tomar, posto o que será dito que de alguma maneira o criador se fez criatura do homem, ah, mas então grande foi a injustiça que se cometeu contra Adão, dentro de quem Deus não morou porque ainda não havia sacramento [...] como poderei achar-me nesta floresta de sim e de não, de não que é sim, do sim que é não, afinidades contrárias, contrariedades afins, como atravessei salvo sobre o fio da navalha [...] (Bartolomeu Lourenço in SARAMAGO, 1982, p.168)

No entanto, esse discurso subversivo e sobrecarregado de lógica num tempo em que a lógica da ciência se encontra velada e até fora de questão, constitui-se como uma contradiscursividade que invade o interior do já-dito, mas no romance esse enunciado não é proferido no espaço público representado, mas no espaço privado. É a obra de arte, o texto saramaguiano que nos conduz a ele. Esse discurso de Bartolomeu é característico de um suposto homem barroco, cindido entre a fé e a razão, entre o abstrato e o material. A negação e afirmação se confundem: dois fios do discurso, o "fio da navalha".
A mesma posição em relação ao "dizer" se encontra em Pepetela, pois em A gloriosa família é o tempo, ou o afastamento temporal, que permite ao escravo subverter as regras de dominação, ao narrar ele sobre seu senhor, ao invés de Baltasar Van Dun narrar sobre ele - como foi sempre a regra na história da História oficial – desvelando a importância da apropriação da tecnologia da escrita e, ainda, da escrita alfabética. Assim, também, transgride as regras do discurso, pois destrói as formas de tratamento de formalidade impostas pela hierarquia, estabelecendo uma outra forma de relações e determinando outros “lugares sociais” no espaço das personagens. E, para o amo Baltasar Van Dun que o acreditava incapaz de “perceber kimbundo”, ele responde com a palavra escrita, e acrescenta no dito, o “não-dito”:

Sempre achei que o meu dono subestimava as minhas capacidades. Bem gostaria nesse momento de poder falar para lhe dizer que até francês aprendi nos tempos dos jogos de cartas. E que bem podiam baixar a voz ao mínimo entendível que eu ouvia sem esforço, bastando ajustar o tamanho das orelhas. Mas se tão pouco valor me atribuía, então também não merecia meu esforço de lhe fazer compreender o contrário, morresse com a sua idéia Uma desforra para tanto desprezo seria contar a sua história, um dia. Soube então que o faria, apesar de ser mudo e analfabeto. Usando poderes desconhecidos, dos que se ocultam no pó branco da pemba ou nos riscos traçados nos ares das encruzilhadas pelos espíritos inquietos. Fosse de que maneira fosse, tive a certeza de o meu relato chegar a alguém, colocado em impreciso ponto do tempo e do espaço, o qual seria capaz de gravar tudo tal como testemunhei. (O Narrador em PEPETELA, 1999, p. 393-4) (grifo nosso)


Em ambos os excertos, o que se encontra é uma revisão da posição ou do lugar social que ocupa na hierarquia, o padre em relação à Igreja e seu discurso, o escravo em relação a seu amo e seu papel no meio social. Com eles, o discurso permite a revisão do lugar social a partir da construção da enunciação e da contradiscursividade em relação ao pré-construído.
Segundo Mangueneau (1996, p. 110), “no universo mundano, a identidade resulta da posição mais ou menos elevada que se ocupa, da qualidade da sociedade a que se pertence. Como aí tudo ocorre em conversas, é capital construir em seu discurso uma imagem de si capaz de fazer com que você tenha acesso ou se mantenha no círculo mais elevado. (...)”. Nesse universo, com efeito, basta que se acredite que você dispõe de uma situação invejável para que você dela disponha efetivamente. Nela, o boato é o único suporte das identidades e a conversa, longe de ser um passatempo contingente e fútil, é uma atividade com desafios consideráveis (nessa escala, é claro). A interlocução é o espaço em que se conquistam e se arruínam situações.
Essa relação de poder que é imputado a alguém por outrem, fazendo com que se disponha de uma situação invejável, pode ser verificada tanto no discurso de Pepetela – a profecia de Matilde - quanto no discurso de Saramago - quando o padre franciscano, referendado por um superior, passa a ser visto como portador de uma “profecia” e, considerado como discurso “bem sucedido”, dirige-se ao rei, podendo com ele fazer uma “troca”, alicerçado pela declaração de grande virtude, mas assegurada pelo bispo:

Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, e o padre respondeu, Verdade é, Senhor, porém só se o convento for franciscano, e tornou el-rei, Como sabeis, e frei António disse, Sei, não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão, não o construa e Deus decidirá. (SARAMAGO, 1992, p. 14)


Esse enunciado denuncia também como se constroem as “verdades”, como um conjunto de discursos que se auto-referenciam e referenciam-se uns aos outros. No entanto, é contra essas condições de atribuição de valores mundanos a determinados discursos que se insufla o narrador de Saramago. Disposto a revelar como se questionam as tais “verdades”, assume uma posição irônica no segundo capítulo e passa a contar em digressão muitas estórias populares de milagres acontecidos em Portugal, atribuídos à ordem dos franciscanos e, como o frei que teve a revelação se chamava António, a imagem de Santo António integra as narrativas todas, como santo milagreiro. Ou seja, o narrador trata da reiteração de um discurso pré-construído, e o ironiza em tom sarcástico, negando e ao mesmo tempo afirmando que, sendo o franciscano portador da “profecia” o confessor da rainha, poderia ter utilizado as informações para obter benesses e poder.


Agora não se vá dizer que, por segredos de confissão divulgados, souberam os arrábidos que a rainha estava grávida antes mesmo que ela o participasse ao rei. Agora não se vá dizer que D. Maria Ana, por ser tão piedosa senhora, concordou calar-se o tempo bastante para aparecer com o chamariz da promessa o escolhido e virtuoso frei António. Agora não se vá dizer que el-rei contará as luas que decorrerem desde a noite do voto ao dia em que nascer o infante, e as achará completas. Não se diga mais do que ficou dito.
Saiam então absolvidos os franciscanos desta suspeita, se nunca se acharam noutras igualmente duvidosas. (SARAMAGO, 1992, p. 26)


As suspeitas igualmente duvidosas são todas aquelas em que os “milagres contados”, no capítulo segundo, possam soar como “falsos” ou “mentirosos” ao leitor. No entanto, em nenhum enunciado o narrador afirma que não são verdadeiros. Confirma ironicamente uma “verdade duvidosa”, e deixa ao leitor o julgamento.
Em Pepetela, uma profecia enunciada também é referendada por um superior hierárquico, de maneira que o padre pronuncia na missa a “verdade” profética anunciada por Matilde - uma visão insólita que não pode coadunar com a ideologia teórica e prática do pré-construído, o cristianismo católico e protestante – é propagada pelo território de Luanda. Apropriando-se de suas palavras, o padre atribui o discurso a um outro enunciador, o anjo, por isso torna-se “bem sucedido”, pois foi assegurado pelo superior. Diz Matilde em discurso direto:

- Olhe, vou confessar uma coisa. Sei que os flamengos vão ficar aqui sete anos. Desde o dia da chegada ao da partida vão passar exactos sete anos. Vi no dia em que chegaram. Vejo isso escrito constantemente no céu. [...] Gravado a fogo no céu. (PEPETELA, p. 49)

No intradiscurso essas idéias surgem como contradiscursos em relação a outros enunciados ou subentendidos, e se articulam por um processo de ironia, do qual o narrador não poupa quase nenhuma personagem. Seu padrão se concentra em desvelar essa forma de relações mundanas estabelecidas sobre um discurso que não coaduna com a prática, cujo modelo é de origem estritamente europeu:

O sacerdote se benzeu, provavelmente recordando de que as tábuas de Moisés com os Dez Mandamentos foram gravadas com o fogo divino. E ficou em silêncio [...] Geralmente só a Inquisição decide o que é de Deus e o que é do demónio, pensou o padre, mas sem coragem de o dizer, pois não queria assustar uma ovelhinha tão pura e de lã tão macia. [...] (Idem, p. 50)


No intradiscurso, os enunciados do pré-construído se imiscuem ao discurso de Matilde, ao qual se insere o elemento insólito, o maravilhoso, que o padre trata de utilizar como se a ele pertencesse, ao proclamar em meio ao sermão, em plena missa a profecia e ocultando sua origem, legitima-a, como pertencente ao maravilhoso cristão, o qual o narrador trata de delatar e ironizar:

[...] percebi de onde tinha vindo a profecia que ele fizera numa missa [...]. Que um anjo lhe segredara, sete anos de desgraça se abaterão sobre esta terra e sete anos os mafulos vão dominar Luanda, exactos sete anos. Poucos serão os moradores antigos que voltarão a Luanda, só os seus filhos. Um anjo, dissera ele. [...] Então não há anjos para todos os gostos? (Id. Ibid, p. 51)


Esses discursos que se afastam das idéias pré-concebidas das formalidades e ideologias do centro dominante podem ser considerados como discursos ex-cêntricos. Neles, a própria forma de relações é contestada, e, ainda, a própria formalidade no nível das relações de interlocução. Um discurso que, além de contrariar, presta-se a revelar que no interior dos enunciados dos discursos da ideologia dominante não se encontram apenas verdades, mas enunciados “bem sucedidos”, como justificativas do mesmo poder que os veiculam. Nesse caso, a legitimidade se encontra em deslocar o enunciador do círculo dos dominados – Matilde, uma jovem angolana, mestiça e adivinha – para a esfera do poder dominante - o anjo - e seu porta-voz: o padre. Assim, desvincula o enunciador do enunciado, podendo referendá-lo pela voz de um enunciador superior. Esse é um jogo, embora antiético e larápio em suas formas, que sobrevive nas sociedades pós-modernas, onde os que possuem acesso aos meios de publicação apoderam-se não das palavras, mas dos “discursos” e “idéias” dos que a eles não tem acesso.
É importante lembrar do caráter implícito da ironia, um subentendido que não se encontra exposto, que não se constitui como o contrário do dito, mas como algo que se encontra deslocado em relação ao dito e não escrito literalmente. É o narrador que desvela a relatividade em relação ao caráter do enunciador primeiro: Matilde, substituída pela figura do anjo, no discurso do padre, cujo significado é conotativo, mas não para o público-alvo do sermão que o entenderá como denotativo. Nesses enunciados, a eficácia da palavra se encontra sujeita aos questionamentos.

3.11. Leis do discurso

O discurso das personagens nas narrativas, ou seja, o que se encontra nos implícitos de suas falas e que determina as relações que se estabelecem entre elas, encontram-se aliados ao princípio da sinceridade, oscilando entre duas concepções: uma cínica, na qual a relação não se baseia nem na sinceridade nem na falta dela, mas em uma estratégia de sujeitos que dizem o que é necessário para serem integrados em uma comunidade; a outra, uma concepção psicológica ou ética, onde ser sincero é dizer o que se pensa. (MANGUENEAU, 1996, p. 121)
Essas concepções se encontram em jogo no discurso dos autores e, nos objetos de estudo em questão, a valorização dos narradores recai sobre a segunda concepção, enquanto a primeira é aquela justamente exposta ao ridículo. As convenções, tanto no que diz respeito às performances sociais quanto à ética nas relações, tornam a sinceridade dos enunciados proferidos pelos sujeitos mais valorizados pelos autores.
Assim, é possível estabelecer uma relação de analogia com o período contemporâneo – entendendo que não há dois momentos que se repetem exatamente na história - e, especificamente, a comparação com o comportamento corriqueiro da sociedade ocidental globalizada: pronta a valorizar muito mais as atitudes e discursos que se enquadram no interior de uma concepção cínica – dizer o que é preciso para “agradar” -, de forma generalizada, pois existem os grupos de exceção.
Por essas questões, muitos dos novos romances históricos produzidos nas décadas de 60, 70, 80 e princípios de 90, encarregam-se de subverter esses valores também no espaço das relações, revelando um jogo de convenções que se reporta ao gérmen da modernidade e aos discursos que lhe serviram de suporte na veiculação de suas ideologias – nos séculos XVI a XVIII -, num momento perverso de expansão e dominação de “outros”, de mobilização de impérios pelo mundo todo e do acúmulo do capital, cuja base de sustentação se constituía em mercantil e escravista-mercantil, mas sempre expropriadora.
Execrar essas formas de conveniências significa expurgar a superficialidade nas relações e expelir parte do excesso de formalidades que limita certos grupos e nações a meros reprodutores de um sistema hierárquico reproduzido sob variadas formas, onde a fixidez dessas formas de tratamento e de dominação se reproduz, enquanto uma classe emergente passa o bastão à outra na construção dos Impérios: burguesia mercantilista (séculos XIV a XVII), burguesia industrial (séculos XVIII e XIX) e burguesia financista (embora tenha existido desde o século XIII , inicia seu apogeu no século XX e seu ápice no XXI).
Além da lei da sinceridade, outras leis devem ser muito específicas em relação ao conteúdo dos enunciados, os ditos; e dos implícitos, os não-ditos que, de alguma forma, terminam por se constituir como um texto à margem. São as leis da informatividade, da exaustividade e de modalidade.
No que diz respeito à lei da informatividade é preciso ter claro que qualquer transgressão dessa lei provoca um efeito cômico garantido. Já a lei da exaustividade prescreve que um enunciado deve fornecer a informação pertinente máxima, sendo subordinado ao princípio de pertinência . E a lei da modalidade encarrega-se de condenar os múltiplos tipos de obscuridade na expressão, como as frases muito complexas, as elípticas, o vocabulário ininteligível, os titubeios, etc. E a falta de economia nos meios. Ela também pode revelar as assimetrias ideológicas no interior das sociedades.
Pode-se dizer que a síntese temporal configurada no novo romance histórico trata de garantir a economia dos meios, o que não impede que as outras características consideradas como “obscuras” na linguagem não se perpetuem, por meio de inúmeras elipses dos dizeres, como espaço vazio, preenchido pela imaginação do leitor, ou mesmo como forma de revelar certas “personalidades” das personagens e o caráter da própria obra de arte. No entanto, a presença das marcas da oralidade dos povos na escrita garante, quase sempre, seu vínculo com o popular.
Na relação entre as personagens, a dramaturgia verbal, encenada pelos enunciados, as negociações entre as vozes de cada sujeito passa, muitas vezes, pela conveniência entre o dizer e o não dizer e se resolvem em intercâmbios que são ao mesmo tempo o modelo e o reflexo da deontologia discursiva de determinada sociedade.
No entanto, essa norma discursiva que regula as relações sociais se encontra em crise no novo romance histórico. Ao carnavalizar o nível das relações, o faz também no nível do enunciado e do discurso, e, mesmo quando o discurso assume o tom do "sério", as hierarquias são rompidas e os homens e suas falas são tantas vezes niveladas, ou inclusas no que Bakhtin (1981, p. 105-7), considerou como a categoria da “familiarização” ou do “livre contato familiar entre os homens”.
Em Saramago, além da relação fraternal entre o padre Bartolomeu e o casal Blimunda e Baltasar, muitos outros momentos revelam uma ruptura da hierarquia, quando o discurso do alto e do baixo se imiscuem, nivelando os homens, confundindo e desestabilizando a deontologia discursiva no tempo diegético.
Se a sociedade de época não permite um nivelamento social, pois a condição oferecida ao rei, mesmo na hora derradeira sempre será diferente do humilde soldado, mesmo em campo de batalha em defesa dos interesses normalmente reais, mas é o narrador, essa instância subversiva em Saramago, que tratará de igualar em alguns enunciados, de alguma maneira, pelo discurso o rei e o soldado:


D. Maria Ana terá agora outros e mais urgentes motivos para rezar. El-rei anda muito achacado, sofre de flatos súbitos, debilidade que já sabemos antiga, mas agora agravada, duram-lhe os desmaios mais do que um vulgar fanico, aí está, uma excelente lição de humildade ver tão grande rei sem dar acordo de si, de que lhe serve ser senhor de Índia, África e Brasil, não somos nada neste mundo e quanto temos cá fica. Por costume e cautela acodem-lhe logo com a extrema-unção, não pode sua majestade morrer inconfessa, como qualquer soldado comum em campo de batalha, lá onde os capelães não chegam nem querem chegar, [...] mas ninguém sabe que pecados terá cometido D. João V desde a última vez que se confessou, e já foi ontem, quantos maus pensamentos se podem ter e cometer em vinte e quatro horas, [...] (SARAMAGO, p. 110) (grifo nosso)

Tão pecador quanto um homem vulgar, o rei teria pecados de um dia para o outro, enquanto sua condição de atendimento espiritual é assimétrica à do soldado no campo de batalha que morre sem o sacramento – importante para ele -, embora o enunciado deixe claro que diante da morte não importa ser soldado ou senhor dos continentes. A idéia da morte atravessa o conjunto discursivo de Memorial.
Em Pepetela, esses momentos também se fazem presentes na própria forma de contato entre narrador e personagem principal, além das disposições das relações pessoais articuladas no espaço onde os lugares sociais se confundem, e o alto e o baixo terminam por conviver necessariamente.

Sottomayor morreu quase de repente. Correu primeiro o mujimbo, o governador apanhou as febres. Logo a seguir veio a notícia, ele estava muito mal. E no dia seguinte tocaram os sinos e todos perceberam, Sottomayor foi fazer companhia ao cavalo e ao papagaio. Morte súbita de mais para ser causada pelo paludismo, a suspeita de veneno ou feitiço ganhou corpo. [...] E não se podia excluir a hipótese de ter sido uma pemba que lhe mandaram, pois é sabido que grandes feiticeiros e feiticeiras viviam em Massangano e arredores (PEPETELA, p. 290) (grifo nosso).


Aqui, as formações discursivas cujas formações ideológicas tem origem nas crenças ancestrais locais perpassam o enunciado e se sobrepõe à causa científica da morte, e à razão ocidental, enquanto a poderosa figura do governador Sottomayor e sua morte transformam-se em matéria de mujimbos e hipóteses, e sua figura é rebaixada, ao nivelar-se, pela morte com os animais que haviam falecido pouco antes: o cavalo e o papagaio. A vontade divina, uma marca patente do discurso eurocêntrico, desaparece diante da vontade e do poder dos humanos, obtidos pela magia da pemba.
A crença nas artes mágicas em Angola confunde-se às religiões locais, e assegura sua pertença ao que Carpentier chamou de “real maravilhoso” ou "realidade maravilhosa", ao referir às práticas do vodu no Haiti, oriundas da África. Assim, a morte de Sottomayor configura-se como um ato desejado pelos que se encontram fora do espaço do poder do centro, o ex-cêntrico, instaurando na escrita uma contradiscursividade.