sábado, 17 de maio de 2008

Narrar para...


A hora da história
Seis horas da tarde e os moradores da casa já se encontram no retorno de seu dia, cheio como sempre, despertado das horas de trabalho intenso, de rotina, de cafés, e sim e não do dia, e a exaustão da mecanicidade, do sempre o mesmo de todo dia finalmente se vê assim interrompida pela refeição conjunta mas não mais à mesa, porque na mesa do apartamento não cabem as seis pessoas que vivem em sessenta e cinco metros quadrados. Tirado o cansaço e a poluição grudada no corpo e nos cabelos na chuveirada cheirosa a shampoos de variáveis perfumes artificiais, a roupa limpa parece acariciar a pele esfregada e preparada para o mesmo do dia seguinte. Cada um já faz seu prato simples com uma massa e um pedaço de carne acompanhado de salada enquanto os talheres se perturbam um ao outro por falta de espaço para repousar e os pufs e sofás da pequena saleta logo se encontram amontoadamente ocupados pelos que moram ali.
Aprisionada, não é Sherazade quem vai contar uma história que os apanhará no novelo da curiosidade com uma narrativa que já se comprovou fundamental para a preservação da capacidade de seqüência no raciocínio lógico do ser humano e, ainda, capaz de mobilizar diferentes emoções em seus ouvintes. Não é Sherazade que os fará rir ou quem sabe chorar esta noite como as noites todas que se vêm passando, mas uma tentativa desesperada de imitá-la, a mesma tentativa dos folhetins de seqüestrar para si mesmo toda a atenção do leitor, contando a história em pequenas partes a ponto de consolar com o semelhante da arte os homens que só têm aquelas duas ou três horas da noite como tempo livre do dia para descansar. Não é Sherazade que lhes trará a voz precisa e repleta de entonação, mas a cópia de cada personagem que a contadora de histórias não precisa mais enunciar, porque foi demitida.
Assim, como inúmeros desempregados desse sistema, Sherazade não tem mais emprego, foi substituída pela tevê popular que, embora não seja capaz de fazer quase o mesmo que ela, aparenta fazer muito mais. E, ainda, de quebra, mantém alegre e aprisionado em seu enredo não o rei, mas milhares de trabalhadores, salvando também a si própria e tudo que esconde por trás. E, como Sherazade, pode tornar-se muito rica, mesmo que esteja dividida em uma facção de estórias que parecem intermináveis, continuando semana a semana. Só os esgotados do dia é que ficam cada vez mais vazios e mais pobres, pois não se encontra Sherazade permitindo-lhes o imaginar....
R. Manhas