O CONFRONTO ENTRE A
ORATÓRIA E A FILOSOFIA NO GÓRGIAS DE PLATÃO
Introdução
O texto Górgias foi escrito por Platão entre 395 a 376[1],
ou seja, o século IV a. C., e sua temática principal é a definição e função da
Retórica ou Oratória, bem como sua posição em relação ao “justo” e ao
“injusto”.
É
um dos diálogos fundadores da filosofia, sendo relevante considerar que na
Grécia clássica as implicações da filosofia, ainda não completamente
definida, constituía um misto de ideias
e conceitos a respeito de valores ético-morais em plena circulação entre os
cidadãos (MARCHI, 2009, p. 3), entre os quais não se incluíam mulheres,
crianças e escravos.
- A construção do diálogo Górgias
Para criar essa obra
teórico-ficcional, que mescla arte e teoria filosófica, Platão cria personagens
histórico-ficcionais a partir de personalidades históricas – Górgias, Sócrates
e Polo – e personagens ficcionais inspiradas em modelos reais – Cálicles – que
estaria suportada sobre o discípulo mais ilustre de Górgias, Isócrates, o maior
orador grego. Há ainda a participação da personagem Querofonte, espécie de
figurino, que Sócrates está disciplinando, ou seja, ensinando tanto sobre
retórica quanto sobre dialética platônica.
Sócrates, mestre de Platão,
filósofo que promoveu uma divisão de águas nos estudos filosóficos, é a
personagem que representa o filósofo e reflete a visão de mundo da filosofia
socrática sujeita ao crivo da revisão teórica platônica. Ele é a personagem principal, uma vez que ordenará
a apresentação do elenchos,
conduzindo também o questionamento que objetiva refutar certos usos da
retórica, por meio da refutação dos argumentos de Górgias, Polo e Cálicles,
respectivamente.
Para
organizar uma discussão teórica sobre a importância e uso da retórica na
sociedade grega, principalmente daquela época, o autor elege o diálogo como forma
de plasmar as ideias teóricas discutidas no livro.
O gênero textual empregado –
drama filosófico - permite desvelar um confronto entre a dialética - articulada sobre o princípio opositivo e o da
não-contradição -, empregada no desenvolvimento textual por Platão, e a retórica - conjunto de construções utilizadas pelos mestres da retórica para
ensinar seus alunos na arte de bem falar e organizar o pensamento por meio de
técnicas.
- Estratégias
de construção e confronto
A estrutura de Górgias remete então ao gênero drama
filosófico e suporta-se sobre três atos e um epílogo. Sua estrutura formal pode
ser demarcada da seguinte forma:
Primeiro ato: A conversa
polida com Górgias; segundo ato: o embate verbal com Polo; e terceiro ato: a
discussão com Cálicles. No Epílogo, dá-se o confronto entre o Hedonismo e a
Temperança.
O que se mostra muito
interessante é que, tendo a retórica função axial no diálogo, marcando o tema
sobre que se sustentam todos os demais questionamentos, as construções gramaticais
que dão forma a esse drama funcionam com os termos binários platônicos que
consistem em refutar uma das opções em função de outra. Ou seja, sustenta-se em
esquemas lógicos do tipo:
Se
p, então não q
Sob
esse esquema primário de pensamento, que consiste em admitir um termo para
negar o outro, estrutura-se parte da dialética que formata os escritos e o
próprio pensamento platônico fundado em binarismos primários. Exemplo: Se bem,
não mal; se quente, não frio; se grego, não árabe; etc.
Essa mesma dualidade opositiva será
encontrada sob outras formas na atualidade em construtos maniqueístas,
principalmente verificados no eurocentrismo, em que o par opositivo se refere a
países não desenvolvidos, especialmente no final do século XX, a saber: se
atrasado, não desenvolvido; se inferior, não superior; se bárbaro, não
civilizado. (COVER, 2010, p.169).
Essa dualidade, entre outros
esquemas lógicos caracterizam a filosofia platônica, aproximando o diálogo
Górgias da segunda fase do trabalho de Platão, assemelhando-o aos pressupostos
teóricos propostos na República, de acordo com Marchi (2009, p. 3).
Segundo a mesma autora, no Górgias de Platão, o conflito entre razão e afecção ocorre pela
distinção de dois tipos de desejos: o racional e o irracional (boulhsiç x
epiqumia).
Apresenta, ainda, o paradoxo
socrático, com modificações em relação aos diálogos anteriores, sendo o
conhecimento do que é justo a causa do agir com virtude, embora considerando
que a vontade sofre divisão e que a natureza tende ao vício, uma vez que o
conhecimento não pode ser estendido a todos, diferentemente dos diálogos
anteriores.
No Górgias a tese da
unidade das virtudes é repensada por Platão, que, ao admitir a possibilidade do
conflito entre razão e afecção, percebe “a insuficiência da explicação da
motivação humana para a ação (...) e busca uma nova teoria que privilegie uma
explicação mais profunda dos atos humanos.” Nessa nova teoria da ação, proposta
por Platão, as afecções fazem parte da análise das ações e são consideradas
fundamentais no conhecimento da natureza humana. (MARCHI, 2009, p. 5).
Segundo Wilson Antonio Frezzatti Junior, é possível
afirmar que o diálogo objeto deste estudo reúne:
Questões
metafísicas, epistemológicas e morais entrelaçam-se no diálogo. Sócrates mostra
que a oratória, por não tratar do justo e do injusto como verdades imutáveis, é
apenas um simulacro de um ramo da política, ou seja, uma imitação da justiça.
Portanto, a oratória ou a retórica produz ilusões que buscam somente agradar, e
não conhecer, acerca do justo e do injusto. De forma geométrica (Teorema de
Tales), o filósofo estabelece as seguintes relações: a ciência política (a
filosofia dialética) está para a oratória assim como o bem está para o prazer,
a realidade para a aparência, a episteme para a doxa e o verdadeiro para o
simulacro. Os interlocutores de Sócrates, um a um, são apanhados em contradição
por meio da dialética. Após afirmar que a oratória é a maior das artes porque
fala de forma mais convincente do que qualquer especialista, mas que ela pode
ser mal empregada por culpa de quem a utiliza., Górgias declara ensinar sobre o
justo e o injusto. (FREZZATTI JUNIOR, 2006, p. 30)
Assim,
encontrando-se em vulnerável situação,
oprimido pela dualidade da retórica e pela breviloquência exigida pelo filósofo
ao orador, o drama desenrola-se de maneira que o questionamento no elenchos remeta o retor à
obrigatoriedade de um pacto com a filosofia, no sentido de admitir a
viabilidade da retórica por meios que conduzem tanto ao justo quanto ao
injusto, à ilusão, ou seja, persuasão e manipulação.
- As
personagens e o diálogo
Antes de entender as personagens, é importante
compreender as verdadeiras relações entre as ideias de Sócrates e as teorias de
Platão, especialmente as que sustentam o diálogo Górgias.
Segundo Marchi , são os escritos de Aristóteles que vão
nortear essa “separação” entre as ideias de Sócrates e a aplicação ou não delas
nas teorias do discípulo Platão:
A principal fonte
de separação entre as teses de Sócrates e as teses de Platão são os testemunhos
aristotélicos. Aristóteles foi discípulo de Platão na Academia, por esta razão
e por ter vivido em uma época próxima àquela em que Sócrates viveu, acreditamos
que os comentários de Aristóteles são bastante seguros e crucias para a
análise da
‘questão socrática’, baseiam-se nos seguintes preceitos:
1.
Sócrates discute a ética, mas não se ocupa da
natureza como um todo. As sensações ficam de fora de sua busca, pois são
instáveis e sempre mudam de opinião (Metafísica 987bd 1-8),
2.
Sócrates não
alega ter conhecimento e baseava sua busca na questão “o que é” (Met. 1078b
17-32),
3.
Não faz alusão à teoria das ideias (Met.
1086b 2-7),
4.
Possuía uma visão racionalista das virtudes; assim,
era a razão quem tornava o homem virtuoso ou não. Defendia a tese da unidade
das virtudes (Ética Nicomaquéia VI, 13, 1145 a1-2). (MARCHI, 2009, p. 9-10)
3.1.
Sócrates
O que se revela enigmático
nos diálogos e tem causado polêmica entre os estudiosos diz respeito à
separação entre as ideias publicadas por Platão sobre um suposto Sócrates
“real”, o qual seria a encarnação perfeita da filosofia. Por outro lado, no
Górgias, os estudiosos verificam significativas diferenças em relação aos
primeiros diálogos escritos por Platão, especificamente:
a.
O tom assumido por Sócrates é mais positivo e
dogmático do que nos diálogos menores. Seus longos discursos demonstram uma
exposição sistemática de conceitos e ideias.
b.
No Górgias a recorrência da canônica questão
‘o que é’ é menor.
c.
O tratamento
do conflito da alma no Górgias e o problema da virtude parecem ser colocados
junto com a ideia de que o conhecimento é suficiente para que a virtude esteja
presente.
d.
O mito escatológico final demonstra o interesse pela
imortalidade da alma, o que está ausente nos diálogos socráticos. (MARCHI,
2009, p. 09)
Assim, a possibilidade de um
“Sócrates real” nos escritos de Platão, especificamente nos diálogos escritos
após o Górgias não se confirma. Antes, a estruturação teórica do mundo das
ideias de Platão inicia-se já em alguns textos dos primeiros escritos dos
diálogos. Nessa primeira fase, há muitos indícios de que os escritos de Platão
sejam construções baseadas nos diálogos verdadeiros de Sócrates com os mais
diversos filósofos.
3.2.
Górgias de Leontinos
(...)
3.3.
Polo
A discussão com Górgias
termina, mas não a argumentação socrática, para continuar o diálogo surge Polo,
que inicia a conversa acusando Sócrates de ter forçado Górgias a concordar com
seus argumentos, obrigando-o a admitir que é de responsabilidade do orador
conhecer o justo, o belo e bom e ensiná-los a quem não possui tal conhecimento,
embora ambos soubessem que não era esta a função da retórica.
Nesta segunda parte, Sócrates
chega ao ponto alto da sua crítica à retórica, dizendo que ela não é uma arte
(tecnh), mas uma experiência/habilidade (empeiria) que produz prazer e
satisfação.
Os
dois adjetivos usados por Sócrates estão no mesmo campo conceitual e são
colocados juntos para enfatizar a função da retórica (para Sócrates): que é
iludir as pessoas, oferecendo coisas prazerosas ao invés de oferecer-lhes
coisas realmente boas. Com este argumento, o filósofo retoma a definição de
retórica dada por Polo no início do diálogo, que a classifica como empeiria,
porém com uma interpretação diferente do que seja esta experiência. A empeiria
na concepção de Sócrates não é algo louvável, uma qualidade, como era para
Polo, mas sim algo pejorativo, até mesmo um defeito, que nada tem de belo.
É
importante verificar que Polo se preocupa não somente em responder ao
questionamento do filósofo, mas também inaugura uma nova disposição,
questionando a Sócrates ou repetindo a pergunta em outros termos. Sócrates
impõe uma condição:
- Absteres-te, Polo, dos discursos estirados como te
comprazias no começo.
- Como assim? Então, não me é
permitido falar quanto quiser?
Ao
interrogar Sócrates, Polo obtém dele que a retórica é simplesmente uma espécie
de rotina, como fonte de prazer, em oposição à filosofia, fonte de conhecimento.
Polo, ignorando o
ponto-de-vista socrático, pondera que o fato de a retórica ser fonte de prazer
é suficiente para colocá-la como algo belo, prenunciando a teoria hedonista que será radicalizada por Cálicles na terceira
parte do diálogo.
Segundo Sócrates, a retórica está longe de ser bela.
- O que eu denomino retórica é apenas uma parte de
certa coisa que está longe de ser bela.
E, ainda, insiste com Polo,
desqualificando a retórica:
- (...) uma prática que nada tem de arte, e que só exige um espírito
sagaz e corajoso e com a disposição
natural de saber lidar com os homens. Em
conjunto, dou-lhe o nome de adulação. A meu ver, essa prática compreende várias
modalidades, uma das quais é a culinária. (...) Como partes da mesma
[culinária], incluo também a retórica, o gosto da indumentária (moda) e também
a sofística: quatro partes com quatro campos diferentes de atividade (...).
No processo de
desqualificação, define a retórica como:
- (...) A retórica é o simulacro de uma parte da política.
Com o objetivo de
refutar a teoria hedonista, Sócrates afirma que o prazer é uma “isca para a ignorância”. E ainda:
- A retórica é (...) antítese para a alma do que a cozinha é para o
corpo.
Por dedução, a retórica é o mal para a alma.
Para Sócrates, a manipulação dos oradores
encontra-se relacionada ao conceito de “poder”. De tal maneira, que ele provoca
pelo questionamento:
- Como, então,
poderão ser os oradores todo poderosos nas cidades, ou os tiranos, se Polo não
provou a Sócrates que eles podem fazer o
que querem?
Para
Polo, os oradores não fazem o que querem, mas o que lhes parece ser melhor.
Polo, então, instala um paradoxo: os
oradores não fazem o que querem, mas o que lhes dá prazer.
Na última parte da discussão
Sócrates também se empenha em descobrir se há de fato uma relação entre o
prazer e o belo e se há, qual é essa relação.
O argumento utilizado por
Sócrates para refutar a tese de Polo baseia-se na ideia de que a adulação (kolakeia)
é um conjunto de práticas fundadas na experiência (empeiria) e na rotina (tribh),
cujo objetivo é causar prazer e satisfação. A kolakeia (prática) é divida em
quatro partes distintas: a retórica, a sofística, a culinária e a indumentária.
Nessa parte do elenchos, ele trabalha com a comparação,
indicando o que pode ser comparado a quê, estabelecendo relações dialéticas
mais complexas.
Sócrates tenta explicar seu pensamento, o qual
permite que se elabore o seguinte esquema comparativo:
MODALIDADES DE PRÁTICA
|
1. CULINÁRIA 2. RETÓRICA
3. GOSTO DA MODA 4. SOFÍSTICA
ALMA ---- POLÍTICA ---- JUSTIÇA //// RETÓRICA (inversa)
LEGISLAÇÃO //// SOFÍSTICA (inversa)
CORPO ------ CULTURA ---- GINÁSTICA //// MODA
MEDICINA/// CULINÁRIA
Ou:
_ I_ S == C R
G L M J
Sendo: I = gosto da indumentária; G = ginástica;
S = sofística; L = legislação;
C = culinária; M = Medicina; R = Retórica; J =
justiça.
A fim de melhor explicar a
distinção entre arte e lisonja, Sócrates faz a distinção entre corpo (toswma) e
alma (hyuch), desvelando a dicotomia entre ser (ousa) e o parecer (dokousa).
Sugere que, enquanto as artes trabalham com o que é - a verdade socrática -, as experiências trabalham com o
que aparentam ser, mas não o são - o simulacro.
DICOTOMIA à CORPO x
ALMA
DIALÉTICA à SER x PARECER
à
ARTE
/ RAZÃO x RETÓRICA / ADULAÇÃO
VERDADE
SOCRÁTICA x SIMULACRO
A arte está associada à razão
(lo’goç) e tem como fim o bem-estar do
corpo e da alma, a adulação é alogon, desprovida de razão, pois só busca o
prazer e não possui o conhecimento dos meios e nem da natureza daquilo com que
tenta convencer os homens.
A retórica consistiria em
adulação por promover a ilusão junto às pessoas ignorantes (no sentido grego
clássico), parecendo possuir um conhecimento que não tem. Dessa maneira,
trabalharia com o parecer.
Apesar de toda a investida
socrática, Polo continua a defender a retórica e a apresentar argumentos para
demonstrar as vantagens que ela oferece.
Encontra-se instalada, então o
sentido perfeito e profundo da virtus,
de maneira que a virtude do homem sábio deve se sobrepor a maldade dos
ardilosos e manipuladores. Seguindo o pensamento de Marchi:
(...) Polo compara
os oradores aos tiranos, dizendo serem ambos os detentores do poder de matar,
banir ou confiscar os bens de quem quiserem. Para Polo, este poder pode ser
considerado o maior bem e deve ser invejado por todos. Contudo, como era
esperado, Sócrates não pode aceitar esta premissa e irá contra-argumentar,
buscando o que é justo.
Sócrates, assim
como fez com o sentido do vocábulo tecnh e de alguns outros, delimita o
ambiente conceitual do verbo boulomai, que deixa de representar qualquer tipo
de querer para designar o verdadeiro querer.
Deste modo, aquele
que sem conhecimento faz algo pensando ser este o seu querer (boulesqai) na
verdade não faz o que quer, mas aquilo que pensa ser o melhor, pois o querer do
verbo boulomai é o querer racional, que busca o Bem. (MARCHI, 2011, p. 55)
Sobre
os argumentos da inveja dos homens sobre os poderosos (tiranos ou oradores),
que confiscam bens, assassinam e expulsam pessoas da cidade, Polo acredita que
é bom sentir-se assim poderoso, em oposição a Sócrates, para quem :
- não devemos invejar nem os que são para invejar, nem os infelizes,
porém compadecermo-nos deles.
Observe a condenação da inveja em Sócrates, uma das bases de dois dos
mandamentos cristãos:
Não desejar as coisas alheias;
Não desejar a mulher do próximo.
Assim,
a inveja é que levaria ao desejo do que não lhe foi concedido, condenada por
Jesus e por Sócrates, no Górgias.
Outra
ideia aí contida é a da compaixão aos desamparados e aos infelizes, uma das
bases do catolicismo. Enfim, a condenação da inveja.
Outra
questão filosófica levantada suporta-se sobre a questão da prática da injustiça, de tal forma que Sócrates declara que o maior
dos males é cometer uma injustiça e não sofrê-la. Ainda, nessa mesma oportunidade, indica o
castigo como um bem, em oposição a Polo, que considera a punição um mal.
- Se me visse obrigado a optar entre
praticar uma injustiça ou sofrê-la, preferiria sofrê-la, não praticá-la.
(...)
Eis, aí uma outra disposição da virtú grega, ou
seja, o homem sábio não pratica a injustiça.
Inversamente a essa
posição, Polo argumenta que o pior mal é sofrer uma injustiça.
Segundo Marchi, o que acontece é:
(...) Sócrates
passa a usar outros verbos ligados aos desejos e prazeres para falar acerca dos
apetites, como o verbo epiqumew, que irá abarcar o querer ligado aos prazeres e
aos apetites, enquanto boulomai referir-se-á ao querer racional, o filosófico.
Os tiranos e os
retores, por exemplo, fazem aquilo que acreditam ser o melhor, porém esta
crença não passa de uma falsa opinião (doxa) e por não ser um conhecimento (episthmh)
esse querer não pode mais ser expresso pelo verbo boulomai. Sócrates insiste em
ressaltar que mesmo no âmbito da crença tanto o retor quanto o tirano buscam
sempre o que acreditam ser o melhor, mesmo que, na verdade, isto seja o pior. (MARCHI, 2009, p. 56)
A seguir, vê-se a
esquematização desse argumento, organizada por E. R. Droppius (apud Marchi,
2009, p. 55) que ilustra bem essa relação filosófica dialética mais complexa:
Mind-tendence (politikh) Body-tendence
(anwnumon)
Técnh
regulative corrective regulative corrective
Genuine a nomoqetikh
b dikaiosunh c gumnastikh d iatrikh
Spurious a´ sofistikh
b´ rehtorikh c kommwtikh d oyopoiikh
Sócrates vê-se às voltas com
os argumentos de Polo para convencê-lo de que o maior poder(dúnamiç) é cometer
injustiça sem ser punido. Então, contrA-argumenta,
dizendo que o poder fundado no
verdadeiro querer (boulomai) é um bem, ou seja, na razão (logoç).
E o paradoxo, é que,
contrariamente a ideia de bem, este
poder só irá corromper e arruinar a pessoa, a qual, na ilusão de estar sendo
beneficiada, comete ações injustas e corrompe sua alma. Sócrates recusa a ideia
de que os oradores e os tiranos possam fazer o que querem baseado na ideia de
que o querer (boulomai) só existe quando há o conhecimento e que este sempre deseja
o bem.
É importante reconhecer que
neste momento, as dualidades platônicas do bem e mal, justo e injusto são
projetadas na dialética utilizada pela personagem de Sócrates.
Sócrates continua defendendo o
paradoxo socrático:
o conhecimento
resulta em ações boas.
Portanto, se o objetivo de toda ação é o fim,
seu resultado, não são os meios; o fim buscado por todos é sempre bom, mesmo
que os meios para obtenção deste fim não sejam os mais agradáveis ou
aprazíveis, o que importa é que o resultado seja bom. O problema consiste na
discussão sobre a falta de conhecimento
e não na motivação, uma vez que todos sempre buscam o que é bom, como foi dito
acima, porém a maioria não possui o conhecimento necessário para agir
verdadeiramente buscando o bem, pois eles têm a falsa opinião daquilo que é o
melhor.
No Górgias, o paradoxo socrático encontra dificuldade em
se organizar, em oposição ao Protágoras. Um exemplo dessa
dificuldade é a que surge no conflito o querer e o fazer, Platão precisava
rearranjar, ou pelo menos, restringir a abrangência desse paradoxo. Assim, Platão restringe o sentido do “querer”
a apenas os filósofos. Esse mesmo argumento pode ser visto no Livro IV da
República. Segundo o excerto, os tiranos, os oradores e a maioria das pessoas
não têm acesso mental e emocional a este “verdadeiro querer”.
Segundo Sócrates, falta-lhes
conhecimento, “uma vez que suas ações
são baseadas em crenças infundidas por opiniões
falsas acerca daquilo que realmente é bom e justo.” (MARCHI, 2009, p. 57)
Assim, o que o texto deixa
claro é a incapacidade das pessoas em perceber que certas opiniões, além de
falsas, carecem de estabilidade, uma vez que o discernimento do bem e do mal,
do justo e do injusto depende de conhecimento.
Assim, para que a maioria das pessoas fossem capazes
de expressar desejos e escolhas fundadas no bem deveriam sofrer certo tipo
de orientação para que suas opiniões
tivessem fundamento no Bem.
Nesse sentido, Sócrates
defende que a prática do mal e da injustiça deve ser punida e o punido deve
entender que o castigo possui papel disciplinante àquele que cometeu atos
injustos.
O paradoxo moral: “ninguém faz
o mal de forma voluntária” reaparece no texto, com a restrição do termo “boulomai”,
como já foi dito anteriormente, o querer traz implícito a ideia de que se quer
algo bom.
Para Polo, no entanto, são
verdadeiramente felizes as pessoas que fazem o que querem e não sofrem qualquer
punição, sustentando um paradoxo, e usando como exemplo Arquelau, ex-escravo e
governador da Macedônia.
Segundo Platão, a felicidade
consiste em permanecer na mesma condição em que nasceu o homem, de maneira que,
sendo escravo, deveria Arquelau permanecer escravo e não “ascender ao
principado pelo crime”, como teorizaria Nicolau Maquiavel mil e oitocentos anos
mais tarde. Vejamos como se dá esse embate:
- (...) de acordo com seu modo
de pensar, Arquelau é infeliz? – pergunta
Polo a Sócrates.
- Sim, amigo, se for injusto. – responde o filósofo.
- E como poderá deixar de ser
injusto? Por lei (...) ele era escravo
de Alcetas, e se quisesse proceder honestamente, continuaria servindo Alcetas,
e seria feliz, de acordo com a tua doutrina.
E o discípulo de Górgias
prossegue, ironicamente. Sócrates, então, torna a inquiri-lo sobre o mesmo
assunto:
- (...) (...) és de opinião
que pode ser feliz quem pratica o mal e é injusto, tal como Arquelau, que
consideras feliz, apesar de seus crimes. Podemos admitir que essa é a sua
maneira de pensar?
Ao que Polo responde:
- Perfeitamente.
Observe o paradoxo moral:
Ser escravo e atender essa
condição legal, servindo durante toda a vida ao seu amo honestamente, atendendo
aos princípios legais OU tramar um ardil para mata-lo e apropriar-se dos bens
daquele para viver de maneira prazerosa e luxuosa, colocando-se acima da lei,
ou seja, tornando-se governador e controlando pela força os que fazem as leis?.
Ser
escravo não é uma condição interessante na Grécia, uma vez que o escravo não se
beneficiava da democracia ateniense e suas liberdades legais, as quais eram
estendidas somente aos cidadãos atenienses.
O argumento apresentado pode
ser resumido da seguinte forma: quando se age, busca-se um fim, que, necessariamente,
é bom; assim o bem é fim de todas as ações. Convém salientar que quem age de
maneira má não o faz voluntariamente, suas crenças é que estão erradas e as
pessoas, na incapacidade de conhecerem por si só as coisas boas, ficam sujeitas
a estas crenças que as levam a buscar coisas injustas como se fossem as
melhores.
Do mesmo modo, conclui Sócrates, o tirano e o
orador não fazem o que realmente querem, pois não possuem a “boulhsiç”, e nem
têm um verdadeiro poder, agem buscando vantagens sem saber que na verdade estão
se prejudicando muito mais do que àqueles que enganam e dos quais tiram
vantagens.
Para Polo, quem tem grande
poder é feliz, pois pode fazer tudo aquilo quiser sem ser punido; para Sócrates
somente o justo é poderoso e feliz.
Polo tenta refutar a ideia de Sócrates sobre o que
é ser justo ou injusto e o que é mais vantajoso e ironicamente acaba apresentando
a ideia tão cara à República de que o justo é aquele que segue sua
natureza (predestinação), mesmo que seja de escravo, e vive feliz na condição a que foi designado.
- Quem comete injustiça, poderá ser feliz , na
hipótese de ser punido e castigado?
Segundo Sócrates, sim, segundo Polo,
não. Acompanhe os argumentos do retórico, por meio do exemplo:
(...) Se um
indivíduo é apanhado e detido na tentativa criminosa de apoderar-se do poder, é
posto a tratos e mutilado; queimam-lhe os olhos, e depois infligem as maiores e
mais variadas torturas, e de ver ele que a mulher e os filhos são tratados da
mesma maneira, (...) é colocado na cruz e besuntado com breu e queimado vivo:
esse indivíduo será mais feliz se nunca for descoberto, conseguir tornar-se
tirano (...) e governar durante toda a vida(...) Isso que consideras impossível
de refutar?
Para
Sócrates, esses são os mais infelizes, uma vez que ser livre para ele significa
liberdade moral e não apenas física, o que indica a supremacia da alma sobre o
corpo neste momento da teorização em Platão.
Sócrates não discute este
ponto, apenas concorda com a definição dada por seu interlocutor, mas é
realmente notável a definição de justiça desta passagem.
O paradoxo proposto por Sócrates, que diz ser
pior cometer do que sofrer injustiça, também traz implícita a ideia de que o
injusto é aquele que não se contenta com seu lugar de direito e busca, sempre
de forma perversa, alterar sua condição; como, por exemplo, o escravo que mata
seus parentes para tornar-se tirano e desfrutar de toda sorte de injustiças e
riquezas sem ser punido.
Polo, ao falar do tirano
Arquelau, expõe o conceito de justiça apresentado na República, neste
trecho ele sintetiza o que seria a ideia de Sócrates de justiça, a qual pode
ser resumida da seguinte forma: Arquelau era por lei escravo de Alcetas, se
continuasse escravo seria, na visão de Sócrates, justo e feliz.
Contudo, Arquelau cometeu
inúmeras atrocidades e injustiças que o conduziram a governador da Macedônia,
ao invés de ser poderoso e feliz, o novo tirano ao ocupar um cargo que não era
seu de direito podia ser considerado o homem mais desafortunado e infeliz de
todos.
Assim, o elencho argumentativo
utilizado para convencer Polo sobre a questão do justo e do injusto essencial à
prática da retórica, pode ser resumido em torno de dez topois platônicos
representados na personagem Sócrates:
1) Exige breviloquência;
2) Indica a retórica como uma espécie de rotina, entre outras, como a
culinária, o gosto da indumentária (moda); a sofística e a ginástica.
3) Desqualifica a retórica como arte, rebaixando-a ao nível das práticas
rotineiras;
4) Qualifica o bem e o mal em relação ao corpo e à alma;
5) Relaciona as atividades associadas ao corpo e à alma, destacando a
política e a cultura, e especificando suas relações com a legislação e a
justiça, na primeira; as relações com a
medicina e a ginástica, bem como práticas que lhes parecem correlatas, direta
ou inversamente;
6) Refuta o hedonismo e produz uma teoria que prima pela temperança, ou
equilíbrio, em que os valores morais sobrepõem-se aos conflitos bárbaros;
7) Discute sobre a injustiça e refuta a ideia de que o injusto possa ser
feliz;
8) Procura produzir a unidade da virtude, ou seja, somente o bom, o belo e
o bem podem trazer a felicidade. O bom é o justo, o belo é a arte, a filosofia, e o bem são os fins:
cumprir as leis visando o bem de todos.
9) Os maiores males do mundo (injustiça, intemperança e vícios da alma)
opõem-se aos maiores bens (justiça, equilíbrio e saúde do corpo e da mente) –
economia – medicina – justiça;
10) Compara a medicina, a economia e
a justiça, ao que Polo responde ser a justiça a mais bela.
O conceito de eudaimonia, apresentado acima resume
de certa forma aquele do Livro IV da República, no qual se diz que é
feliz aquele que ocupa a função a que foi designado, sem almejar mudar seu status social, pois para isto teria de
ser injusto e se tornaria, por assim dizer, infeliz.
Por exemplo, um artesão nasceu
e deveria morrer artesão, esta é sua aptidão natural e deve ser exercida com
exclusividade e optime. Sem saber, Polo, ao expor o conceito socrático
de felicidade e justiça, apresentou no Górgias a definição de eudaimonia
e dikaiosunh apresentada por Sócrates na República.
Alguns dos argumentos
introduzidos na discussão entre Sócrates e Polo, são retomados e melhor
desenvolvidos na terceira parte do diálogo, na qual o debatedor de Sócrates é a
personagem Cálicles.
Um destes argumentos é
enfatizado por Polo e diz que cometer injustiça sem ser punido é algo a ser
invejado. Outro desses argumentos está relacionado com a visão socrática acerca
da relação entre o prazer e o bem; Sócrates defende que a beleza das coisas
está na utilidade e na agradabilidade, assim o belo deve ser prazeroso e bom.
Todavia, não é qualquer prazer que é belo, somente aquele que visa ao bem.
A felicidade no sentido
filosófico, como aparece no Górgias não consiste em se livrar dos males,
mas em conservar-se longe deles. Todavia, quando isto é impossível, a punição
transforma-se em uma aliada da justiça, pois possui o objetivo de tornar melhor
a alma de quem pratica injustiça.
Em Górgias, a maldade presente na alma do injusto é o pior mal que
pode haver para o ser humano e, quando as medidas persuasivas se esgotam, a
única forma de tentar resgatar e reeducar a alma má é com medidas punitivas e
coercivas.
Protágoras no diálogo homônimo
também defendeu com insistência o uso da violência com o objetivo de se
corrigir o vício e educar os ímpios. Evidentemente, o sofista possuía objetivos
muito diferentes dos de Sócrates ao propor o uso de severas punições, contudo a
semelhança entre os argumentos do sofista e do filósofo serve para ressaltar
ainda mais o uso de argumentos semelhantes para defender estilos de vida e objetivos
completamente diferentes.
Isto também mostra que Platão não
estava tão longe da realidade de sua época, apesar de propor uma reforma social
radicalmente oposta às políticas conhecidas até então. Usando as palavras de
Sócrates, suas teorias são inspiradas pela filosofia, fonte imutável e
inesgotável de verdade, é o caminho que leva às ações justas.
No final da segunda parte do Górgias,
Sócrates leva Polo a concordar com seus argumentos, contudo este não parece ter
sido de fato convencido pelo filósofo, mas sim, como aconteceu com Górgias, ter
sido encurralado e forçado a concordar com Sócrates e suas teses.
Cálicles interrompe a
discussão, acusa Polo de cair na mesma armadilha argumentativa que Górgias e
critica Sócrates por articular seus argumentos de maneira a inibir ou forçar
seu interlocutor a concordar com ele, mesmo que seu oponente não seja convencido
de suas ideias.
3.4.
Cálicles
Segundo Marchi (2009)
A origem desta personagem é muito obscura. Algumas especulações aproximam-na de
políticos da época, outras de um retor. Muitos comentadores também discutem
sobre qual seria sua posição política, se Cálicles representava um democrata,
um oligarca/aristocrata ou um defensor das idéias tirânicas.
Realmente seu discurso e
postura dão vazão às mais variadas especulações; no entanto, este não é o fator
preponderante de sua argumentação. Pois, independente de sua origem e escolha
política, ele defende que por natureza o melhor é cometer injustiça e pela lei
o melhor é sofrê-la[2].
3.5.
Querofonte
Hóspede
e amigo de Sócrates, funciona como o espectador do diálogo, embora vez e outra
seja chamado a dele participar.
Conclusão
Ao trazer para a cena do drama
filosófico tanto sofistas quanto o filósofo Sócrates, ícone do pensamento de
época, Platão constrói um importante documento científico acerca das
habilidades tanto no que diz respeito ao uso da linguagem em sua forma mais
avançada – a retórica - revelando seus
profundos problemas e seus possíveis usos, assim como os estudos das teorias da
linguagem na atualidade; e em contraposição a ela, os mais avançados
conhecimentos no estudo da profundidade dos valores morais e da adequação do
pensamento, no que diz respeito à construção dos paradoxos socrático a respeito
de valores éticos e morais daquele contexto e momento históricos.
Sábio, Platão apóia-se no
conhecimento já existente, tanto para refutar nele certas ideias consolidadas,
revelando o quanto podem ser perniciosas à sociedade e ao homem em sua
essência, enquanto marca a estrutura profunda do texto com a dualidade ser versus parecer.
a
relação de Platão com os grandes sofistas é sempre ambivalente: por um lado, litigiosa;
por outro, receptiva, dialogante e crítica. É por isto que há que distinguir o
respeito que lhe merecem Protágoras
e
Górgias, que ele tão bem aproveita e a quem se dirigem as suas teses, do
escárnio com que se refere a epígonos como Eutidemo e Dionisodoro, passando pela
ironia cáustica que destina a Antístenes, Pródico e Hípias (que sobre ele não
terão exercido influência). Num outro plano se acha a crítica às teses políticas
de Trasímaco e Antifonte. Todavia, nelas como nas atrás citadas, o exame dos
passos relevantes dos diálogos mostra que a polémica contra os sofistas nunca
coibiu o filósofo de importar, explorar e reelaborar as concepções sofísticas
que ele próprio combate. (SANTOS,
Cada personagem no Górgias tem
uma função e um papel importantes. Górgias é o retor famoso que defendia a
persuasão como a mais poderosa arma de poder, a qual era característica
predominante da retórica. “Polo é essencial para que Sócrates mostre o passo
que a filosofia dá além da experiência: o saber bem, que ganha sua expressão na
conclusão de que o poder é o bem”.
Cálicles é o oposto do
conceito platônico-socrático de homem ideal, pois, por se opor ao estilo de vida
filosófico, nega-se de forma contundente a ouvir aquilo que o filósofo tem a
dizer. E Sócrates, por fim, é o homem sábio por excelência, o verdadeiro
filósofo. (MARCHI, 2009, p. 81)
REFERÊNCIAS
COVER, Maciel. Marxismo e
Metodologia da Ciência social. In: Anais do IV Simpósio Lutas Sociais na
América Latina. Imperialismo, nacionalismo e militarismo no Século XXI. GT 8.
Marx e marxismos latino-americanos 14 a 17 de setembro de 2010, Londrina, UEL.
(p. 162-170).
DINUCCI, Aldo Lopes. Análise das
Três Teses do Tratado do Não-Ser de Górgias de Leontinos.
FREZZATTI JUNIOR, Wilson Antonio. “’O valor de um caracol’ ou ‘o nobre
nietzchiano’: um elogio a Cálicles?”. Cadernos Nietzsche. n. 21, 2006, (p.
29-44).
MARCHI, Alessandra Daniela. A
virtude e o justo no Górgias de
Platão. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia
da FFLCH – USP – Universidade de São Paulo, 2009. Orientador: Prof. Dr. Marco
Antônio de Ávila Zingano.
[1]
Segundo Frezzatti Junior (2006, p. 29). Porém, Segundo Marchi (2009, p. 6),
Kann teria demarcado a criação do texto entre 390 e 388 a. C.
[2] G.B. Kerferd em um
artigointitulado “Plato’s treatemant of Callicles in the Górgias” (In: Proceeding
of the Cambridge PhilologicalSociety 20, 1974, pp.
48-52) propôs uma interessante discussão sobre as especulações acerca
dasaspirações políticas de Cálicles. (apud MARCHI, 2009, p. 60)