domingo, 18 de agosto de 2013

O CONFRONTO ENTRE A ORATÓRIA E A FILOSOFIA NO GÓRGIAS DE PLATÃO

 
O CONFRONTO ENTRE A ORATÓRIA E A FILOSOFIA NO GÓRGIAS DE PLATÃO

Introdução

O texto Górgias foi escrito por Platão entre 395 a 376[1], ou seja, o século IV a. C., e sua temática principal é a definição e função da Retórica ou Oratória, bem como sua posição em relação ao “justo” e ao “injusto”.
            É um dos diálogos fundadores da filosofia, sendo relevante considerar que na Grécia clássica as implicações da filosofia, ainda não completamente definida,  constituía um misto de ideias e conceitos a respeito de valores ético-morais em plena circulação entre os cidadãos (MARCHI, 2009, p. 3), entre os quais não se incluíam mulheres, crianças e escravos.

  1. A construção do diálogo Górgias

Para criar essa obra teórico-ficcional, que mescla arte e teoria filosófica, Platão cria personagens histórico-ficcionais a partir de personalidades históricas – Górgias, Sócrates e Polo – e personagens ficcionais inspiradas em modelos reais – Cálicles – que estaria suportada sobre o discípulo mais ilustre de Górgias, Isócrates, o maior orador grego. Há ainda a participação da personagem Querofonte, espécie de figurino, que Sócrates está disciplinando, ou seja, ensinando tanto sobre retórica quanto sobre dialética platônica.
Sócrates, mestre de Platão, filósofo que promoveu uma divisão de águas nos estudos filosóficos, é a personagem que representa o filósofo e reflete a visão de mundo da filosofia socrática sujeita ao crivo da revisão teórica platônica.  Ele é a personagem principal, uma vez que ordenará a apresentação do elenchos, conduzindo também o questionamento que objetiva refutar certos usos da retórica, por meio da refutação dos argumentos de Górgias, Polo e Cálicles, respectivamente.
            Para organizar uma discussão teórica sobre a importância e uso da retórica na sociedade grega, principalmente daquela época, o autor elege o diálogo como forma de plasmar as ideias teóricas discutidas no livro.
O gênero textual empregado – drama filosófico - permite desvelar um confronto entre a dialética - articulada sobre o princípio opositivo e o da não-contradição -, empregada no desenvolvimento textual por Platão, e a retórica - conjunto de construções  utilizadas pelos mestres da retórica para ensinar seus alunos na arte de bem falar e organizar o pensamento por meio de técnicas.

  1. Estratégias de construção e confronto

A estrutura de Górgias remete então ao gênero drama filosófico e suporta-se sobre três atos e um epílogo. Sua estrutura formal pode ser demarcada da seguinte forma:
Primeiro ato: A conversa polida com Górgias; segundo ato: o embate verbal com Polo; e terceiro ato: a discussão com Cálicles. No Epílogo, dá-se o confronto entre o Hedonismo e a Temperança.
O que se mostra muito interessante é que, tendo a retórica função axial no diálogo, marcando o tema sobre que se sustentam todos os demais questionamentos, as construções gramaticais que dão forma a esse drama funcionam com os termos binários platônicos que consistem em refutar uma das opções em função de outra. Ou seja, sustenta-se em esquemas lógicos do tipo:

Se p, então não q

            Sob esse esquema primário de pensamento, que consiste em admitir um termo para negar o outro, estrutura-se parte da dialética que formata os escritos e o próprio pensamento platônico fundado em binarismos primários. Exemplo: Se bem, não mal; se quente, não frio; se grego, não árabe;  etc.
Essa mesma dualidade opositiva será encontrada sob outras formas na atualidade em construtos maniqueístas, principalmente verificados no eurocentrismo, em que o par opositivo se refere a países não desenvolvidos, especialmente no final do século XX, a saber: se atrasado, não desenvolvido; se inferior, não superior; se bárbaro, não civilizado. (COVER, 2010, p.169).
Essa dualidade, entre outros esquemas lógicos caracterizam a filosofia platônica, aproximando o diálogo Górgias da segunda fase do trabalho de Platão, assemelhando-o aos pressupostos teóricos propostos na República, de acordo com Marchi (2009, p. 3).
Segundo a mesma autora, no Górgias de Platão,  o conflito entre razão e afecção ocorre pela distinção de dois tipos de desejos: o racional e o irracional (boulhsiç x epiqumia).
Apresenta, ainda, o paradoxo socrático, com modificações em relação aos diálogos anteriores, sendo o conhecimento do que é justo a causa do agir com virtude, embora considerando que a vontade sofre divisão e que a natureza tende ao vício, uma vez que o conhecimento não pode ser estendido a todos, diferentemente dos diálogos anteriores.
No Górgias a tese da unidade das virtudes é repensada por Platão, que, ao admitir a possibilidade do conflito entre razão e afecção, percebe “a insuficiência da explicação da motivação humana para a ação (...) e busca uma nova teoria que privilegie uma explicação mais profunda dos atos humanos.” Nessa nova teoria da ação, proposta por Platão, as afecções fazem parte da análise das ações e são consideradas fundamentais no conhecimento da natureza humana. (MARCHI, 2009, p. 5).
Segundo Wilson Antonio Frezzatti Junior, é possível afirmar que o diálogo objeto deste estudo reúne:

Questões metafísicas, epistemológicas e morais entrelaçam-se no diálogo. Sócrates mostra que a oratória, por não tratar do justo e do injusto como verdades imutáveis, é apenas um simulacro de um ramo da política, ou seja, uma imitação da justiça. Portanto, a oratória ou a retórica produz ilusões que buscam somente agradar, e não conhecer, acerca do justo e do injusto. De forma geométrica (Teorema de Tales), o filósofo estabelece as seguintes relações: a ciência política (a filosofia dialética) está para a oratória assim como o bem está para o prazer, a realidade para a aparência, a episteme para a doxa e o verdadeiro para o simulacro. Os interlocutores de Sócrates, um a um, são apanhados em contradição por meio da dialética. Após afirmar que a oratória é a maior das artes porque fala de forma mais convincente do que qualquer especialista, mas que ela pode ser mal empregada por culpa de quem a utiliza., Górgias declara ensinar sobre o justo e o injusto. (FREZZATTI JUNIOR, 2006, p. 30)

            Assim, encontrando-se  em vulnerável situação, oprimido pela dualidade da retórica e pela breviloquência exigida pelo filósofo ao orador, o drama desenrola-se de maneira que o questionamento no elenchos remeta o retor à obrigatoriedade de um pacto com a filosofia, no sentido de admitir a viabilidade da retórica por meios que conduzem tanto ao justo quanto ao injusto, à ilusão, ou seja, persuasão e manipulação.


  1. As personagens e o diálogo

Antes de entender as personagens, é importante compreender as verdadeiras relações entre as ideias de Sócrates e as teorias de Platão, especialmente as que sustentam o diálogo Górgias.
Segundo Marchi , são os escritos de Aristóteles que vão nortear essa “separação” entre as ideias de Sócrates e a aplicação ou não delas nas teorias do discípulo Platão:

A principal fonte de separação entre as teses de Sócrates e as teses de Platão são os testemunhos aristotélicos. Aristóteles foi discípulo de Platão na Academia, por esta razão e por ter vivido em uma época próxima àquela em que Sócrates viveu, acreditamos que os comentários de Aristóteles são bastante seguros e crucias para a
análise da ‘questão socrática’, baseiam-se nos seguintes preceitos:
1.         Sócrates discute a ética, mas não se ocupa da natureza como um todo. As sensações ficam de fora de sua busca, pois são instáveis e sempre mudam de opinião (Metafísica 987bd 1-8),
2.          Sócrates não alega ter conhecimento e baseava sua busca na questão “o que é” (Met. 1078b 17-32),
3.         Não faz alusão à teoria das ideias (Met. 1086b 2-7),
4.         Possuía uma visão racionalista das virtudes; assim, era a razão quem tornava o homem virtuoso ou não. Defendia a tese da unidade das virtudes (Ética Nicomaquéia VI, 13, 1145 a1-2). (MARCHI, 2009,  p. 9-10)

3.1.        Sócrates

O que se revela enigmático nos diálogos e tem causado polêmica entre os estudiosos diz respeito à separação entre as ideias publicadas por Platão sobre um suposto Sócrates “real”, o qual seria a encarnação perfeita da filosofia. Por outro lado, no Górgias, os estudiosos verificam significativas diferenças em relação aos primeiros diálogos escritos por Platão, especificamente:

a.         O tom assumido por Sócrates é mais positivo e dogmático do que nos diálogos menores. Seus longos discursos demonstram uma exposição sistemática de conceitos e ideias.
b.         No Górgias a recorrência da canônica questão ‘o que é’ é menor.
c.          O tratamento do conflito da alma no Górgias e o problema da virtude parecem ser colocados junto com a ideia de que o conhecimento é suficiente para que a virtude esteja presente.
d.         O mito escatológico final demonstra o interesse pela imortalidade da alma, o que está ausente nos diálogos socráticos. (MARCHI, 2009, p. 09)

Assim, a possibilidade de um “Sócrates real” nos escritos de Platão, especificamente nos diálogos escritos após o Górgias não se confirma. Antes, a estruturação teórica do mundo das ideias de Platão inicia-se já em alguns textos dos primeiros escritos dos diálogos. Nessa primeira fase, há muitos indícios de que os escritos de Platão sejam construções baseadas nos diálogos verdadeiros de Sócrates com os mais diversos filósofos.


3.2.        Górgias de Leontinos
(...)
3.3.        Polo

A discussão com Górgias termina, mas não a argumentação socrática, para continuar o diálogo surge Polo, que inicia a conversa acusando Sócrates de ter forçado Górgias a concordar com seus argumentos, obrigando-o a admitir que é de responsabilidade do orador conhecer o justo, o belo e bom e ensiná-los a quem não possui tal conhecimento, embora ambos soubessem que não era esta a função da retórica. 
Nesta segunda parte, Sócrates chega ao ponto alto da sua crítica à retórica, dizendo que ela não é uma arte (tecnh), mas uma experiência/habilidade (empeiria) que produz prazer e satisfação.
            Os dois adjetivos usados por Sócrates estão no mesmo campo conceitual e são colocados juntos para enfatizar a função da retórica (para Sócrates): que é iludir as pessoas, oferecendo coisas prazerosas ao invés de oferecer-lhes coisas realmente boas. Com este argumento, o filósofo retoma a definição de retórica dada por Polo no início do diálogo, que a classifica como empeiria, porém com uma interpretação diferente do que seja esta experiência. A empeiria na concepção de Sócrates não é algo louvável, uma qualidade, como era para Polo, mas sim algo pejorativo, até mesmo um defeito, que nada tem de belo.
            É importante verificar que Polo se preocupa não somente em responder ao questionamento do filósofo, mas também inaugura uma nova disposição, questionando a Sócrates ou repetindo a pergunta em outros termos. Sócrates impõe uma condição:

- Absteres-te, Polo, dos discursos estirados como te comprazias no começo.

            - Como assim? Então, não me é permitido falar quanto quiser?

      Ao interrogar Sócrates, Polo obtém dele que a retórica é simplesmente uma espécie de rotina, como fonte de prazer, em oposição à filosofia, fonte de conhecimento.
Polo, ignorando o ponto-de-vista socrático, pondera que o fato de a retórica ser fonte de prazer é suficiente para colocá-la como algo belo, prenunciando a teoria hedonista que será radicalizada por Cálicles na terceira parte do diálogo.

Segundo Sócrates, a retórica está longe de ser bela.

            - O que  eu denomino retórica é apenas uma parte de certa coisa que está longe de ser bela.

            E, ainda, insiste com Polo, desqualificando a retórica:

            - (...) uma prática que nada tem de arte, e que só exige um espírito sagaz  e corajoso e com a disposição natural  de saber lidar com os homens. Em conjunto, dou-lhe o nome de adulação. A meu ver, essa prática compreende várias modalidades, uma das quais é a culinária. (...) Como partes da mesma [culinária], incluo também a retórica, o gosto da indumentária (moda) e também a sofística: quatro partes com quatro campos diferentes de atividade (...).

            No processo de desqualificação, define a retórica como:

- (...) A retórica é o simulacro de uma parte da política.



            Com o objetivo de refutar a teoria hedonista, Sócrates afirma que o prazer  é uma “isca para a ignorância”. E ainda:

            - A retórica é (...) antítese para a alma do que a cozinha é para o corpo.

Por dedução, a retórica é o mal para a alma.

Para Sócrates, a manipulação dos oradores encontra-se relacionada ao conceito de “poder”. De tal maneira, que ele provoca pelo questionamento:

            - Como, então, poderão ser os oradores todo poderosos nas cidades, ou os tiranos, se Polo não provou a Sócrates  que eles podem fazer o que querem?

            Para Polo, os oradores não fazem o que querem, mas o que lhes parece ser melhor. Polo, então, instala um paradoxo:  os oradores não fazem o que querem, mas o que lhes dá prazer.
Na última parte da discussão Sócrates também se empenha em descobrir se há de fato uma relação entre o prazer e o belo e se há, qual é essa relação.
O argumento utilizado por Sócrates para refutar a tese de Polo baseia-se na ideia de que a adulação (kolakeia) é um conjunto de práticas fundadas na experiência (empeiria) e na rotina (tribh), cujo objetivo é causar prazer e satisfação. A kolakeia (prática) é divida em quatro partes distintas: a retórica, a sofística, a culinária e a indumentária.
            Nessa parte do elenchos, ele trabalha com a comparação, indicando o que pode ser comparado a quê, estabelecendo relações dialéticas mais complexas.
Sócrates tenta explicar seu pensamento, o qual permite que se elabore o seguinte esquema comparativo:

MODALIDADES DE PRÁTICA


                                      
                                                     1. CULINÁRIA 2. RETÓRICA 
                                                 3. GOSTO DA MODA  4. SOFÍSTICA         
                 
                                       ALMA ---- POLÍTICA ---- JUSTIÇA ////  RETÓRICA (inversa)
                                                                          LEGISLAÇÃO ////  SOFÍSTICA (inversa)


                                      CORPO ------ CULTURA ---- GINÁSTICA //// MODA      
                                                                                   MEDICINA/// CULINÁRIA




Ou:

                                              _ I_          S          ==              C            R
                                                 G           L                           M             J
            Sendo:     I = gosto da indumentária; G = ginástica; S = sofística; L = legislação;
C = culinária; M = Medicina; R = Retórica; J = justiça.   
               

A fim de melhor explicar a distinção entre arte e lisonja, Sócrates faz a distinção entre corpo (toswma) e alma (hyuch), desvelando a dicotomia entre ser (ousa) e o parecer (dokousa). Sugere que, enquanto as artes trabalham com o que é - a verdade socrática -, as experiências trabalham com o que aparentam ser, mas não o são - o simulacro.

                                   DICOTOMIA      à    CORPO  x ALMA

                                   DIALÉTICA         à       SER    x  PARECER  à
                                                                      
                                                             ARTE / RAZÃO x  RETÓRICA / ADULAÇÃO
                                               VERDADE SOCRÁTICA x  SIMULACRO
                                                                      
A arte está associada à razão (lo’goç) e  tem como fim o bem-estar do corpo e da alma, a adulação é alogon, desprovida de razão, pois só busca o prazer e não possui o conhecimento dos meios e nem da natureza daquilo com que tenta convencer os homens.
A retórica consistiria em adulação por promover a ilusão junto às pessoas ignorantes (no sentido grego clássico), parecendo possuir um conhecimento que não tem. Dessa maneira, trabalharia com o parecer.
Apesar de toda a investida socrática, Polo continua a defender a retórica e a apresentar argumentos para demonstrar as vantagens que ela oferece.
Encontra-se instalada, então o sentido perfeito e profundo da virtus, de maneira que a virtude do homem sábio deve se sobrepor a maldade dos ardilosos e manipuladores. Seguindo o pensamento de Marchi:

(...) Polo compara os oradores aos tiranos, dizendo serem ambos os detentores do poder de matar, banir ou confiscar os bens de quem quiserem. Para Polo, este poder pode ser considerado o maior bem e deve ser invejado por todos. Contudo, como era esperado, Sócrates não pode aceitar esta premissa e irá contra-argumentar, buscando o que é justo.
Sócrates, assim como fez com o sentido do vocábulo tecnh e de alguns outros, delimita o ambiente conceitual do verbo boulomai, que deixa de representar qualquer tipo de querer para designar o verdadeiro querer.
Deste modo, aquele que sem conhecimento faz algo pensando ser este o seu querer (boulesqai) na verdade não faz o que quer, mas aquilo que pensa ser o melhor, pois o querer do verbo boulomai é o querer racional, que busca o Bem. (MARCHI, 2011, p. 55)


  Sobre os argumentos da inveja dos homens sobre os poderosos (tiranos ou oradores), que confiscam bens, assassinam e expulsam pessoas da cidade, Polo acredita que é bom sentir-se assim poderoso, em oposição a Sócrates, para quem :
- não devemos invejar nem os que são para invejar, nem os infelizes, porém compadecermo-nos deles.

Observe a condenação da inveja em Sócrates, uma das bases de dois dos mandamentos cristãos:

Não desejar as coisas alheias;
Não desejar a mulher do próximo.

            Assim, a inveja é que levaria ao desejo do que não lhe foi concedido, condenada por Jesus e por Sócrates, no Górgias.
            Outra ideia aí contida é a da compaixão aos desamparados e aos infelizes, uma das bases do catolicismo. Enfim, a condenação da inveja.
            Outra questão filosófica levantada suporta-se sobre a questão da prática da injustiça, de tal forma que Sócrates declara que o maior dos males é cometer uma injustiça e não sofrê-la.  Ainda, nessa mesma oportunidade, indica o castigo como um bem, em oposição a Polo, que considera a punição um mal.

            - Se me visse obrigado a optar entre praticar uma injustiça ou sofrê-la, preferiria sofrê-la, não praticá-la.

            (...)
           
            Eis, aí uma outra disposição da virtú grega, ou seja, o homem sábio não pratica a injustiça. 
            Inversamente a essa posição, Polo argumenta que o pior mal é sofrer uma injustiça.
Segundo Marchi, o que acontece é:

(...) Sócrates passa a usar outros verbos ligados aos desejos e prazeres para falar acerca dos apetites, como o verbo epiqumew, que irá abarcar o querer ligado aos prazeres e aos apetites, enquanto boulomai referir-se-á ao querer racional, o filosófico.
Os tiranos e os retores, por exemplo, fazem aquilo que acreditam ser o melhor, porém esta crença não passa de uma falsa opinião (doxa) e por não ser um conhecimento (episthmh) esse querer não pode mais ser expresso pelo verbo boulomai. Sócrates insiste em ressaltar que mesmo no âmbito da crença tanto o retor quanto o tirano buscam sempre o que acreditam ser o melhor, mesmo que, na verdade, isto seja o pior.  (MARCHI, 2009, p. 56)


A seguir, vê-se a esquematização desse argumento, organizada por E. R. Droppius (apud Marchi, 2009, p. 55) que ilustra bem essa relação filosófica dialética mais complexa:

Mind-tendence (politikh)                                               Body-tendence (anwnumon)
Técnh   regulative                    corrective                    regulative                    corrective
Genuine a nomoqetikh              b dikaiosunh               c gumnastikh               d   iatrikh
Spurious a´ sofistikh                 b´ rehtorikh                  c  kommwtikh               d   oyopoiikh



Sócrates vê-se às voltas com os argumentos de Polo para convencê-lo de que o maior poder(dúnamiç) é cometer injustiça sem ser punido. Então,  contrA-argumenta, dizendo que o poder  fundado no verdadeiro querer (boulomai) é um bem, ou seja, na razão (logoç).
E o paradoxo, é que, contrariamente a ideia de bem,  este poder só irá corromper e arruinar a pessoa, a qual, na ilusão de estar sendo beneficiada, comete ações injustas e corrompe sua alma. Sócrates recusa a ideia de que os oradores e os tiranos possam fazer o que querem baseado na ideia de que o querer (boulomai) só existe quando há o conhecimento e que este sempre deseja o bem.
É importante reconhecer que neste momento, as dualidades platônicas do bem e mal, justo e injusto são projetadas na dialética utilizada pela personagem de Sócrates.

Sócrates continua defendendo o paradoxo socrático:
o conhecimento resulta em ações boas.


 Portanto, se o objetivo de toda ação é o fim, seu resultado, não são os meios; o fim buscado por todos é sempre bom, mesmo que os meios para obtenção deste fim não sejam os mais agradáveis ou aprazíveis, o que importa é que o resultado seja bom. O problema consiste na discussão sobre  a falta de conhecimento e não na motivação, uma vez que todos sempre buscam o que é bom, como foi dito acima, porém a maioria não possui o conhecimento necessário para agir verdadeiramente buscando o bem, pois eles têm a falsa opinião daquilo que é o melhor.


No Górgias, o paradoxo socrático encontra dificuldade em se organizar, em oposição ao Protágoras. Um exemplo dessa dificuldade é a que surge no conflito o querer e o fazer, Platão precisava rearranjar, ou pelo menos, restringir a abrangência desse paradoxo.  Assim, Platão restringe o sentido do “querer” a apenas os filósofos. Esse mesmo argumento pode ser visto no Livro IV da República. Segundo o excerto, os tiranos, os oradores e a maioria das pessoas não têm acesso mental e emocional a este “verdadeiro querer”.
Segundo Sócrates, falta-lhes conhecimento, “uma vez que suas ações
são baseadas em crenças infundidas por opiniões falsas acerca daquilo que realmente é bom e justo.” (MARCHI, 2009, p. 57)

Assim, o que o texto deixa claro é a incapacidade das pessoas em perceber que certas opiniões, além de falsas, carecem de estabilidade, uma vez que o discernimento do bem e do mal, do justo e do injusto depende de conhecimento.
 Assim, para que a maioria das pessoas fossem capazes de expressar desejos e escolhas fundadas no bem deveriam sofrer certo tipo de  orientação para que suas opiniões tivessem fundamento no Bem.
Nesse sentido, Sócrates defende que a prática do mal e da injustiça deve ser punida e o punido deve entender que o castigo possui papel disciplinante àquele que cometeu atos injustos.
O paradoxo moral: “ninguém faz o mal de forma voluntária” reaparece no texto, com a restrição do termo “boulomai”, como já foi dito anteriormente, o querer traz implícito a ideia de que se quer algo bom.

Para Polo, no entanto, são verdadeiramente felizes as pessoas que fazem o que querem e não sofrem qualquer punição, sustentando um paradoxo, e usando como exemplo Arquelau, ex-escravo e governador da Macedônia.
Segundo Platão, a felicidade consiste em permanecer na mesma condição em que nasceu o homem, de maneira que, sendo escravo, deveria Arquelau permanecer escravo e não “ascender ao principado pelo crime”, como teorizaria Nicolau Maquiavel mil e oitocentos anos mais tarde. Vejamos como se dá esse embate:
- (...) de acordo com seu modo de pensar, Arquelau é infeliz? – pergunta Polo a Sócrates.
- Sim, amigo, se for injusto. – responde o filósofo.
- E como poderá deixar de ser injusto? Por lei  (...) ele era escravo de Alcetas, e se quisesse proceder honestamente, continuaria servindo Alcetas, e seria feliz, de acordo com a tua doutrina.
E o discípulo de Górgias prossegue, ironicamente. Sócrates, então, torna a inquiri-lo sobre o mesmo assunto:
- (...) (...) és de opinião que pode ser feliz quem pratica o mal e é injusto, tal como Arquelau, que consideras feliz, apesar de seus crimes. Podemos admitir que essa é a sua maneira de pensar?
Ao que Polo responde:
- Perfeitamente.

Observe o paradoxo moral:
Ser escravo e atender essa condição legal, servindo durante toda a vida ao seu amo honestamente, atendendo aos princípios legais OU tramar um ardil para mata-lo e apropriar-se dos bens daquele para viver de maneira prazerosa e luxuosa, colocando-se acima da lei, ou seja, tornando-se governador e controlando pela força os que fazem as leis?.
            Ser escravo não é uma condição interessante na Grécia, uma vez que o escravo não se beneficiava da democracia ateniense e suas liberdades legais, as quais eram estendidas somente aos cidadãos atenienses.

O argumento apresentado pode ser resumido da seguinte forma: quando se age, busca-se um fim, que, necessariamente, é bom; assim o bem é fim de todas as ações. Convém salientar que quem age de maneira má não o faz voluntariamente, suas crenças é que estão erradas e as pessoas, na incapacidade de conhecerem por si só as coisas boas, ficam sujeitas a estas crenças que as levam a buscar coisas injustas como se fossem as melhores.
 Do mesmo modo, conclui Sócrates, o tirano e o orador não fazem o que realmente querem, pois não possuem a “boulhsiç”, e nem têm um verdadeiro poder, agem buscando vantagens sem saber que na verdade estão se prejudicando muito mais do que àqueles que enganam e dos quais tiram vantagens.


Para Polo, quem tem grande poder é feliz, pois pode fazer tudo aquilo quiser sem ser punido; para Sócrates somente o justo é poderoso e feliz.
Polo tenta refutar a ideia de Sócrates sobre o que é ser justo ou injusto e o que é mais vantajoso e ironicamente acaba apresentando a ideia tão cara à República de que o justo é aquele que segue sua natureza (predestinação), mesmo que seja de escravo, e  vive feliz na condição a que foi designado.

            -  Quem comete injustiça, poderá ser feliz , na hipótese de ser punido e castigado?

            Segundo Sócrates, sim, segundo Polo, não. Acompanhe os argumentos do retórico, por meio do exemplo:

            (...) Se um indivíduo é apanhado e detido na tentativa criminosa de apoderar-se do poder, é posto a tratos e mutilado; queimam-lhe os olhos, e depois infligem as maiores e mais variadas torturas, e de ver ele que a mulher e os filhos são tratados da mesma maneira, (...) é colocado na cruz e besuntado com breu e queimado vivo: esse indivíduo será mais feliz se nunca for descoberto, conseguir tornar-se tirano (...) e governar durante toda a vida(...) Isso que consideras impossível de refutar?

            Para Sócrates, esses são os mais infelizes, uma vez que ser livre para ele significa liberdade moral e não apenas física, o que indica a supremacia da alma sobre o corpo neste momento da teorização em Platão.
Sócrates não discute este ponto, apenas concorda com a definição dada por seu interlocutor, mas é realmente notável a definição de justiça desta passagem.
 O paradoxo proposto por Sócrates, que diz ser pior cometer do que sofrer injustiça, também traz implícita a ideia de que o injusto é aquele que não se contenta com seu lugar de direito e busca, sempre de forma perversa, alterar sua condição; como, por exemplo, o escravo que mata seus parentes para tornar-se tirano e desfrutar de toda sorte de injustiças e riquezas sem ser punido.
Polo, ao falar do tirano Arquelau, expõe o conceito de justiça apresentado na República, neste trecho ele sintetiza o que seria a ideia de Sócrates de justiça, a qual pode ser resumida da seguinte forma: Arquelau era por lei escravo de Alcetas, se continuasse escravo seria, na visão de Sócrates, justo e feliz.
Contudo, Arquelau cometeu inúmeras atrocidades e injustiças que o conduziram a governador da Macedônia, ao invés de ser poderoso e feliz, o novo tirano ao ocupar um cargo que não era seu de direito podia ser considerado o homem mais desafortunado e infeliz de todos.

Assim, o elencho argumentativo utilizado para convencer Polo sobre a questão do justo e do injusto essencial à prática da retórica, pode ser resumido em torno de dez topois platônicos representados na personagem Sócrates:

1)    Exige breviloquência;
2)    Indica a retórica como uma espécie de rotina, entre outras, como a culinária, o gosto da indumentária (moda); a sofística e a ginástica.
3)    Desqualifica a retórica como arte, rebaixando-a ao nível das práticas rotineiras;
4)    Qualifica o bem e o mal em relação ao corpo e à alma;
5)    Relaciona as atividades associadas ao corpo e à alma, destacando a política e a cultura, e especificando suas relações com a legislação e a justiça, na primeira;  as relações com a medicina e a ginástica, bem como práticas que lhes parecem correlatas, direta ou inversamente;
6)    Refuta o hedonismo e produz uma teoria que prima pela temperança, ou equilíbrio, em que os valores morais sobrepõem-se aos conflitos bárbaros;
7)    Discute sobre a injustiça e refuta a ideia de que o injusto possa ser feliz;
8)    Procura produzir a unidade da virtude, ou seja, somente o bom, o belo e o bem podem trazer a felicidade. O bom é o justo, o belo é  a arte, a filosofia, e o bem são os fins: cumprir as leis visando o bem de todos.
9)    Os maiores males do mundo (injustiça, intemperança e vícios da alma) opõem-se aos maiores bens (justiça, equilíbrio e saúde do corpo e da mente) – economia – medicina – justiça;
10)  Compara a medicina, a economia e a justiça, ao que Polo responde ser a justiça a mais bela.

 O conceito de eudaimonia, apresentado acima resume de certa forma aquele do Livro IV da República, no qual se diz que é feliz aquele que ocupa a função a que foi designado, sem almejar mudar seu status social, pois para isto teria de ser injusto e se tornaria, por assim dizer, infeliz.
Por exemplo, um artesão nasceu e deveria morrer artesão, esta é sua aptidão natural e deve ser exercida com exclusividade e optime. Sem saber, Polo, ao expor o conceito socrático de felicidade e justiça, apresentou no Górgias a definição de eudaimonia e dikaiosunh apresentada por Sócrates na República.
Alguns dos argumentos introduzidos na discussão entre Sócrates e Polo, são retomados e melhor desenvolvidos na terceira parte do diálogo, na qual o debatedor de Sócrates é a personagem Cálicles.
Um destes argumentos é enfatizado por Polo e diz que cometer injustiça sem ser punido é algo a ser invejado. Outro desses argumentos está relacionado com a visão socrática acerca da relação entre o prazer e o bem; Sócrates defende que a beleza das coisas está na utilidade e na agradabilidade, assim o belo deve ser prazeroso e bom. Todavia, não é qualquer prazer que é belo, somente aquele que visa ao bem.
A felicidade no sentido filosófico, como aparece no Górgias não consiste em se livrar dos males, mas em conservar-se longe deles. Todavia, quando isto é impossível, a punição transforma-se em uma aliada da justiça, pois possui o objetivo de tornar melhor a alma de quem pratica injustiça.
Em Górgias, a maldade presente na alma do injusto é o pior mal que pode haver para o ser humano e, quando as medidas persuasivas se esgotam, a única forma de tentar resgatar e reeducar a alma má é com medidas punitivas e coercivas.
Protágoras no diálogo homônimo também defendeu com insistência o uso da violência com o objetivo de se corrigir o vício e educar os ímpios. Evidentemente, o sofista possuía objetivos muito diferentes dos de Sócrates ao propor o uso de severas punições, contudo a semelhança entre os argumentos do sofista e do filósofo serve para ressaltar ainda mais o uso de argumentos semelhantes para defender estilos de vida e objetivos completamente diferentes.
            Isto também mostra que Platão não estava tão longe da realidade de sua época, apesar de propor uma reforma social radicalmente oposta às políticas conhecidas até então. Usando as palavras de Sócrates, suas teorias são inspiradas pela filosofia, fonte imutável e inesgotável de verdade, é o caminho que leva às ações justas.
No final da segunda parte do Górgias, Sócrates leva Polo a concordar com seus argumentos, contudo este não parece ter sido de fato convencido pelo filósofo, mas sim, como aconteceu com Górgias, ter sido encurralado e forçado a concordar com Sócrates e suas teses.
Cálicles interrompe a discussão, acusa Polo de cair na mesma armadilha argumentativa que Górgias e critica Sócrates por articular seus argumentos de maneira a inibir ou forçar seu interlocutor a concordar com ele, mesmo que seu oponente não seja convencido de suas ideias.


3.4.        Cálicles

Segundo Marchi (2009) A origem desta personagem é muito obscura. Algumas especulações aproximam-na de políticos da época, outras de um retor. Muitos comentadores também discutem sobre qual seria sua posição política, se Cálicles representava um democrata, um oligarca/aristocrata ou um defensor das idéias tirânicas.
Realmente seu discurso e postura dão vazão às mais variadas especulações; no entanto, este não é o fator preponderante de sua argumentação. Pois, independente de sua origem e escolha política, ele defende que por natureza o melhor é cometer injustiça e pela lei o melhor é sofrê-la[2].


3.5.        Querofonte

Hóspede e amigo de Sócrates, funciona como o espectador do diálogo, embora vez e outra seja chamado  a dele participar.

Conclusão
            Ao trazer para a cena do drama filosófico tanto sofistas quanto o filósofo Sócrates, ícone do pensamento de época, Platão constrói um importante documento científico acerca das habilidades tanto no que diz respeito ao uso da linguagem em sua forma mais avançada – a retórica  - revelando seus profundos problemas e seus possíveis usos, assim como os estudos das teorias da linguagem na atualidade; e em contraposição a ela, os mais avançados conhecimentos no estudo da profundidade dos valores morais e da adequação do pensamento, no que diz respeito à construção dos paradoxos socrático a respeito de valores éticos e morais daquele contexto e momento históricos.
            Sábio, Platão apóia-se no conhecimento já existente, tanto para refutar nele certas ideias consolidadas, revelando o quanto podem ser perniciosas à sociedade e ao homem em sua essência, enquanto marca a estrutura profunda do texto com a dualidade ser versus parecer.
a relação de Platão com os grandes sofistas é sempre ambivalente: por um lado, litigiosa; por outro, receptiva, dialogante e crítica. É por isto que há que distinguir o respeito que lhe merecem Protágoras
e Górgias, que ele tão bem aproveita e a quem se dirigem as suas teses, do escárnio com que se refere a epígonos como Eutidemo e Dionisodoro, passando pela ironia cáustica que destina a Antístenes, Pródico e Hípias (que sobre ele não terão exercido influência). Num outro plano se acha a crítica às teses políticas de Trasímaco e Antifonte. Todavia, nelas como nas atrás citadas, o exame dos passos relevantes dos diálogos mostra que a polémica contra os sofistas nunca coibiu o filósofo de importar, explorar e reelaborar as concepções sofísticas que ele próprio combate. (SANTOS,

Cada personagem no Górgias tem uma função e um papel importantes. Górgias é o retor famoso que defendia a persuasão como a mais poderosa arma de poder, a qual era característica predominante da retórica. “Polo é essencial para que Sócrates mostre o passo que a filosofia dá além da experiência: o saber bem, que ganha sua expressão na conclusão de que o poder é o bem”.
Cálicles é o oposto do conceito platônico-socrático de homem ideal, pois, por se opor ao estilo de vida filosófico, nega-se de forma contundente a ouvir aquilo que o filósofo tem a dizer. E Sócrates, por fim, é o homem sábio por excelência, o verdadeiro filósofo. (MARCHI, 2009, p. 81)




REFERÊNCIAS
COVER, Maciel. Marxismo e Metodologia da Ciência social. In: Anais do IV Simpósio Lutas Sociais na América Latina. Imperialismo, nacionalismo e militarismo no Século XXI. GT 8. Marx e marxismos latino-americanos 14 a 17 de setembro de 2010, Londrina, UEL. (p. 162-170).

DINUCCI, Aldo Lopes. Análise das Três Teses do Tratado do Não-Ser de Górgias de Leontinos.

FREZZATTI JUNIOR, Wilson Antonio. “’O valor de um caracol’ ou ‘o nobre nietzchiano’: um elogio a Cálicles?”.  Cadernos Nietzsche. n. 21, 2006, (p. 29-44).

MARCHI, Alessandra Daniela. A virtude e o justo no Górgias de Platão. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da FFLCH – USP – Universidade de São Paulo, 2009. Orientador: Prof. Dr. Marco Antônio de Ávila Zingano.







SANTOS, José Gabriel Trindade. Górgias e o Górgias de Platão. Archai. n. 7, jul-dez 2011, p. 55-66.





[1] Segundo Frezzatti Junior (2006, p. 29). Porém, Segundo Marchi (2009, p. 6), Kann teria demarcado a criação do texto entre 390 e 388 a. C.
[2]  G.B. Kerferd em um artigointitulado “Plato’s treatemant of Callicles in the Górgias” (In: Proceeding of the Cambridge PhilologicalSociety 20, 1974, pp. 48-52) propôs uma interessante discussão sobre as especulações acerca dasaspirações políticas de Cálicles. (apud MARCHI, 2009, p. 60)