O processo penal e seus elementos reveladores
da miséria humana: resenha analítica
MANTOLVANI, R. M.
O texto abordado, intitulado As misérias do processo penal, consiste
em tradução da obra do italiano Francesco Carnelutti, Lê Miserie del Processo Penale (primeira edição: 1957), um clássico
das letras jurídicas.
O tom principal do discurso parece ter sido
indicado propositadamente pelo autor, ao comparar sua composição à poesia: e,
assim, por meio de elementos simbólicos, busca indicar a relação estabelecida
no desenrolar do processo penal, como um palco, em que as luzes se acendem e
apagam, iluminando as figuras participantes do cenário do processo penal.
Sob este enfoque, a temática principal do texto
volta-se ao passado, evoca as lembranças de infância do autor e a figura do
homem encarcerado. Essa construção imagética, que parece surgir sob um foco
luminoso na escuridão, imprime um viés soturno ao texto, enquanto a voz do
discurso conduz o leitor à percepção de um homem encarcerado, pelos sentidos,
solicitando certa empatia mobilizada pela compaixão cristã.
Juntamente com a figura do encarcerado, surge o
elemento simbólico do cárcere: a jaula. Interessante é destacar que o
significante “jaula” não é idêntico a “cela”, uma vez que o primeiro é aplicado
normalmente aos animais. E, vale notar que é precisamente este tom que o autor
procura dar ao texto, em direta intenção de sensibilizar o leitor para a
situação a que é lançado o encarcerado.
Paradoxalmente, afirma que a fera torna-se
homem pela jaula e pela algema, também símbolo representativo do poder da Lei e
da Justiça sobre os homens, sendo tanto um quanto outro signo capaz de revelar
a humanidade que se esconde sob aparente ferocidade.
A relação entre as figuras que atuam no
processo penal é representada pela escada, de maneira que em seus degraus
posicionam-se o Juiz, o Ministério Público e o Defensor Público.
Recobertos por outro símbolo de poder, a toga,
os homens da Justiça, encontram diante de si um outro homem, este, despido de
qualquer representação, está sozinho, no degrau mais baixo da escada. O homem
coberto com a majestade ou solenidade da toga opõe-se à desonra do homem da
algema ou da grade.
O Defensor, representado pela voz autoral,
oculta sob a máscara da terceira pessoa gramatical, descreverá o
script funesto do processo penal e da via sacra a que estará submetido
o acusado. Durante a defesa do réu, seu papel é descer a escada e sentar-se ao
lado do acusado, no último degrau. Embora coberto de nobreza, a humildade e a
amizade o conduzirão ao acusado.
No topo da escada, reveladora das posições no
Tribunal do Júri, encontra-se o Juiz, lugar merecido, segundo o autor, oposto à
situação do Defensor, sentado no lugar mais baixo, ao lado de seu cliente. Mais
que o faminto, o vagabundo, o mendigo, para o autor, o encarcerado é o mais
pobre dos pobres.
Na sua pobreza, e necessidade, o encarcerado,
estende a mão para pedir, seja por sua liberdade e qualquer direito que lhe
assista, seja por aqueles que dele dependem, mas principalmente, pede por
amizade, por solidariedade, por alguém ou algo que lhe conceda o mínimo de
humanidade.
Entre o Juiz, no alto, e o Encarcerado, no
baixo, juntamente com o Defensor, posiciona-se o Ministério Público,
orquestrado no discurso sob o espectro da acusação, investido da função de
impingir a máxima aplicação da Lei.
Por meio da simbologia do crucifixo, pendurado
nos Tribunais, o autor refere-se àquele que injustamente foi julgado, evocando
a necessidade da dignidade do Juiz e o quanto é preciso para julgar um homem.
Refere-se também aos dois criminosos que foram crucificados ao lado de Jesus, e
a maneira como um deles foi perdoado.
Ao abordar a formação do Juiz, indica que, mais
que conhecer profundamente ciências como a filosofia, a sociologia, a
psicologia, entre outras humanidades, sua capacidade de emoção diante da vida e
da natureza, sua condição emocional, e o nível de sua compaixão indicam que o
poder do Juiz será aplicado com imparcialidade.
Explica sobre a posição das partes no processo
e a dialética que envolve a construção de duas verdades, uma da acusação e
outra da defesa, de tal maneira que chega a escandalizar o leigo, propiciando
que os advogados sejam acusados de construtores de sofismas, de maneira que se
mostrem sempre escandalosos. Porém, justifica que estas conflitantes formações
discursivas sejam responsáveis por evitar que o juiz prolate decisões eivadas
de incoerências, para “(...) que não seja um escândalo seu juízo” (Carnelutti,
1995:20).
Considera a situação das testemunhas, a mais
infiel das provas, e seu tratamento delicado, no interior do processo penal, em
concorrência com a nefasta interferência da imprensa e da manipulação exercida
pela mesma sobre a opinião pública, muitas vezes, precipitando a avaliação do
acusado, transformando-o em culpado antes mesmo do julgamento.
Entre outras críticas que se desenrolam ao
longo do texto, enfatiza a questão da penalidade imposta ao réu que, quando
condenado, não tem sua pena finda com o cumprimento da sentença imposta pelo
Juiz, mas uma sentença eterna imposta pela sociedade, que insiste em puni-lo,
mesmo após nada mais dever à Justiça, seja impedindo seu retorno ao mundo do
trabalho, seja boicotando seus interesses e de seus descendentes no interior da
sociedade. Sob essa perspectiva, o encarcerado é punido ad infinitum pela ausência de compaixão cristã.
Ainda, apoiado sobre a ética cristã, e
suportado sobre o conceito do amor fraterno e incondicional, o Outro, o
diferente, passa a ser a medida de todos os homens, segundo o autor. Para ele,
o homem comum depara-se cotidianamente com suas próprias prisões espirituais e
é preciso que se depare com os sofredores em seu caminho a fim de cultivar o
espírito cristão, aguçando seus sentimentos mais nobres.
Ao evocar os valores da ética cristã, o texto
de Carnelutti, na realidade, funciona como um contradiscurso aos discursos
dominantes do atual momento histórico, mas resiste por sua acronia. Nele, o
discurso cristão é eivado de apelos à abolição das diferenças entre os homens,
contrariamente às interpretações da atual conjuntura, em que há um desencontro
entre discurso e prática.
As práticas ditas cristãs, no atual momento
histórico, em nossa sociedade, encontram-se muito afastadas deste modelo sugerido
pelo texto de Francesco, seja por valorizar a solidariedade em detrimento do
individualismo exacerbado, pela apologia de altruístas valores do espírito
humano, ou por conclamar uma compaixão humanitária, aceita por grupos
minoritários, em visível escala redutora.
O texto afasta-se dos discursos e práticas
dominantes por incitar a abnegação da hipocrisia no nível das relações, viés
predominante da atual sociedade de mercado e consumo desenfreado, em que o
objeto e seu valor de troca superam o valor do homem em si, na prática.
Belo e inspirador, desconstrutor de paradigmas
e pré-conceitos, este texto é atemporal e indispensável às novas gerações de
advogados.
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