sexta-feira, 22 de agosto de 2008

AS MARCAS DO FANTÁSTICO NA LITERATURA DE PEPETELA

Rosangela Manhas Mantolvani (USP/CAPES)

As marcas do sobrenatural e, principalmente, do animismo das culturas africanas encontram-se presentes na literatura de Pepetela desde os seus primeiros escritos, mesmo naqueles textos em que predominam as marcas da escrita que Benjamin Abdala Jr. (1987) nomeou neo-realista. Assim, as marcas do fantástico como modo se encontram sob diferentes nuances nos romances Mayombe (1980) e A geração da utopia (1992), propiciadas por uma escrita em que a memória das tradições são plasmadas na criação de imagens inscritas nos textos.
Essas imagens permitem ao leitor o momento da incerteza que pode ou não ser remetido às formas do imaginário de diferentes culturas, ou seja, permite singulares leituras. Assim, em Mayombe, destacamos as imagens da personagem Leli, que surgem nos momentos em que o comandante Sem Medo se encontra face a face com o perigo; e as de Mussole, o espectro da amada do ex-comandante Aníbal, metaforizada na escrita como a continuidade da utopia no encontro com os valores da tradição, em A geração da utopia.
Essas personagens femininas são figuras que não possuem voz, construídas como imagens que se fazem presentes nas mentes de dois dos heróis das narrativas: Sem Medo, de Mayombe, e Aníbal, de A geração da utopia. Por estarem no plano metafísico, foram consideradas como "espectros".
Algumas sociedades tradicionais de Angola têm por crença que os espíritos dos que partiram habitam os espaços selvagens e, especialmente, as árvores. Por isso, a obra pepeteliana que, em muitos aspectos de seu percurso trabalha com a recuperação das tradições das culturas angolanas, mostra personagens que poderíamos classificar como fantásticas.
O sobrenatural surge nas obras estudadas sob duas formas: em Mayombe, por meio dos sonhos de Sem Medo, em que as imagens oníricas recriam o espírito acusador e sofrido de Leli; e na obra A Geração da Utopia, pela configuração da figura de Mussole, que habita os delírios de Mundial, os sonhos e lembranças do Sábio e, finalmente, passa a habitar uma mangueira cultivada exclusivamente para lhe servir de abrigo, plantada por Aníbal na praia da Caotinha.

1. Léli, o sonho diurno de Sem Medo
Léli, a personagem fantasma, aparece pela primeira vez na narrativa pela voz do narrador, em focalização interna de Sem Medo, no capítulo "A Missão", quando ocorre a emboscada que os revolucionários do MPLA organizam contra :

(...) na espera, as recordações tristes da meninice misturavam-se à saudade dos amigos mortos em combate e mesmo (ou sobretudo) ao rosto de Leli. Sem Medo notou que tinham passado mais de seis meses sem pensar em Leli. Desde o último combate. Ao irem atacar o Posto de Miconje, a imagem de Leli viera confundir-se com a chuva (...) Fora aí, na cegueira da floresta e da chuva, que Leli viera, se impusera de novo. A angústia perseguiu-o até dar a ordem de fogo. O grito de fogo saíra-lhe como uma libertação (...) O grito ferido de Sem Medo afugentara a imagem de Leli.
Mais uma vez Leli voltava e se impunha. Os olhos de Leli acusavam-no de mil crimes, vingativos e meigos; havia tal abandono e solidão nos olhos dela que Sem Medo quis gritar, afastando o fantasma. (...) Leli suplicava e acusava, muda, as palavras eram inúteis, ele conhecia-as, não as esquecera. Foi essa a tua vingança, reconquistares-me para me abandonares ao saber que eu estava de novo presa a ti. O teu orgulho, tudo pelo teu orgulho, um orgulho sem limites, que tudo sacrifica. (PEPETELA, 1982, p.51-52)

O discurso do narrador é invadido pelo discurso direto de Sem Medo, que é invadido, por sua vez, pelas palavras de Leli, que percutem incessantemente em sua memória, trazendo-lhe de volta um tempo que parecia ser passado.
No momento em que o herói se encontra no limiar (BAKTHIN, 1981 (b), p. 54), o fantasma do passado vem fazer-lhe companhia. Sem Medo lembra-se da existência de Leli, dos momentos felizes, e, simultaneamente, traça uma figura da personagem:

Ela corria na praia branca. Os coqueiros inclinavam-se para a cumprimentar. Nua, resplandecente à luz da Lua, o corpo castanho perlado de gotas de água que refletiam o brilho da Lua. Ela corria pela praia branca ao seu encontro. Abraçavam-se, nus, à sombra confidente dos coqueiros e deixavam-se cair na areia. (PEPETELA, 1982, p.52)

Suspensa na narrativa, a imagem poética de Leli desaparece e, somente no capítulo "Ondina", a história de Leli seria contada por Sem Medo a João, o Comissário Político, por ocasião do episódio do caso de Ondina com André. Sem Medo conhecera Leli em 1960; ela era mestiça e viveram juntos sem se casarem, pois o pai desejava que a filha se casasse com um branco. Um dia, Leli disse que amava outro e foi embora de casa, face à inexperiência de Sem Medo, na época. As cenas de Leli pareciam cenas de ciúme a Sem Medo. Um dia, Léli saiu de casa e Sem Medo decidiu que deveria reconquistá-la. Induzida por Sem Medo a uma experiência negativa com o novo parceiro, Leli fora uma vítima da vingança e do orgulho de Sem Medo que a reconquistou apenas para sentir o prazer de desprezá-la posteriormente. Leli é vítima do amor-próprio de Sem Medo, que acostumado à nova vida que impôs a si mesmo, sentiu-se incapaz de ser-lhe fiel. Livre da imensa paixão que nutria por Leli, separou-se dela. Quando o 4 de fevereiro explodiu, Leli estava à procura de Sem Medo e foi apanhada pela UPA e assassinada. Esse assassinato remete à lembrança de Deolinda Rodrigues1, sobrinha de Agostinho Neto, também aprisionada e assassinada pela UPA, em 1968, em revanche contra o MPLA.
Involuntariamente causador da morte de Leli, Sem Medo sente que algo se quebrou com a morte da mulher que tanto amou, mesmo tendo constatado que não a amava mais nos últimos meses de convivência. Algo se perdeu e o herói não pode explicar. Então, ressuscita o fantasma de Leli toda vez que se encontra no limiar, à hora do combate, próximo da morte.
A proximidade do herói com Ondina, permite que a figura de Leli se apresente com mais freqüência nos pensamentos de Sem Medo, e muitas vezes, em fusão de imagens com o rosto da protagonista:

Mas Ondina vinha no sonho, oferecendo-se nua a ele e dizendo: "Amo o João". Sem Medo acordava, fumava e voltava a adormecer. Ondina corria agora sobre a savana de Huíla, os cabelos eram longos e negros, os cabelos de Leli, os braços estendidos para ele. Mas ele estava cem metros abaixo, no fundo do precipício, e Ondina-Leli atirava-se no vazio para cair nos seus braços. Noite interminável. (PEPETELA, 1982, p.247-248).

À medida que o perigo de morte se aproxima, mais freqüentes de fazem as aparições de Leli na narrativa. A figura de Ondina traz de volta a imagem de Leli do passado de Sem Medo. No decorrer da narrativa, porém, a imagem de Leli é substituída pela de Ondina nos delírios de Sem Medo: "Leli ficara nas trevas, só Ondina aparecia. (...)" (PEPETELA, 1982, p.261) Na batalha final, é Ondina quem surge nas lembranças de Sem Medo.

A figura de Leli funciona como motivação à luta de Sem Medo. Sua perda e seu cruel assassinato o obrigam a ressuscitá-la em cada batalha, em cada enfrentamento, como maneira de recuperá-la, de homenageá-la, embora tardiamente, oferecendo-lhe sua vitória contra as forças da opressão. Bode expiatório da facção contrária ao MPLA, a figura de Leli presta-se a denunciar os crimes da UPA, funcionando, ainda, como uma censura ao movimento que se diz libertário, mas que teria sido capaz de assassinar mulheres, mestiços, brancos e trabalhadores civis do sul do território: uma crítica ácida que tem na figura de Leli sua inspiração maior.
A incerteza sobre a figura construída na narrativa, configurada no modo fantástico, é, gradualmente esclarecida ao longo da narrativa, revelando sua construção como produto da confusão emocional do comandante Sem Medo, configurando-se no modo mimético, indicado por Rosemary Jackson, quando rejeita a proposta de “gênero estranho”, de Todorov. Diz ela:

Para ver o fantástico como uma forma literária, precisa-se fazer distinção em termos literários, e o misterioso [ou estranho] não é um destes – não o é como categoria literária -, enquanto o maravilhoso é [um gênero]. Talvez seja mais útil definir o fantástico como um modo literário antes do que como gênero e colocá-lo entre os modos opositivos do maravilhoso e do mimético.2 [T.M.] (JACKSON, 2001, p. 32) [grifo meu]

2. Mussole, o espírito das chanas do Leste
Espécie de espírito inspirador de ações, Mussole, de A Geração da Utopia, surge no episódio "A Chana", que se passa nas matas do Moxico, quando Vitor, o Mundial, guerrilheiro do MPLA, procura atravessá-la em direção a Zâmbia, mas desvia-se do caminho, permanecendo muitos dias perdido e delirante em plena floresta. É por meio da voz de Aníbal, o Sábio, comandante do MPLA, que Mussole será delineada. Voz essa que lateja no pensamento de Mundial, em plena mata ou na anhara.

Dois anos antes, o Sábio contara-lhe: Assisti a uma xinjanguila interessante, no Kembo, (...) o segredo da dança está na interação entre o coletivo e o individual (...) Eu estava entre Maria e Mussole (...) Maria terá uns dezassete ou dezoito anos, Mussole talvez pouco mais nova. (...) Mussole (...) é o tumulto profundo que se deixa adivinhar nas águas paradas, é a vida borbulhante na chana. Os braços em cruz sobre o peito, a cabeça inclinada para a direita, as ancas rebolando ligeiramente, profundamente. Tudo nela se passa no interior, é como se gozasse seu próprio corpo. (...) O certo é que integrou meu corpo ao seu prazer, os passos mudaram, no curto instante em que para mim vinha os olhos de mbambi. (...) (PEPETELA, 2000, p.150-151) (grifo nosso)

Mussole é a mulher que o envolveu de forma mágica e sensual, é caracterizada por "olhos de mbambi e corpo de adolescente desabrochando". Aníbal apaixonou-se por ela, depois que fizeram amor. Esses fatos, por dedução na intra-narrativa, teriam ocorrido em 1970.
A imagem de Mussole, traçada pelo Sábio, replica na memória de Vítor e agora a personagem surge diretamente em suas reminiscências, por meio da voz do narrador em discurso indireto que estende uma analepse: "o Sábio contava as coisas com tal sentimento e colorido que ele via Mussole, o seu corpo flexível dançando para ele, o corpo despedaçado sangrando para ele, os olhos do Sábio sobre ela reclinado derramando lágrimas dele. (...)" (PEPETELA, 2000, p.164)

Tomado de súbita inconsciência e tremores provocados pela fome, o frio e o cansaço, Vitor, delira e procura assumir a posição do Sábio: "(...) fora ele que amara Mussole, fora ele que se extasiara com suas carícias, fora ele que com ela morrera naquele dia de Abril do ano passado em que as chanas cantavam de florzinhas coloridas e os rios se penteavam de grandes folhas redondas". (PEPETELA, 2000, p.164-165)

O Sábio retornou ao kimbo de Mussole, no Kembo "no dia 14 de abril de 1971" (PEPETELA, 2000, p.304) (dia da morte de Mussole e do Herói), que as reminiscências de Vítor trazem ao presente da narrativa:
(...) retornou (...) interrompendo os quinze dias do terceiro encontro para pagar o alembamento aos pais de Mussole e encontrou o kimbo fumegante, queimado e no meio do capim encontrou o corpo esquartejado de Mussole. Aníbal cavou a sepultura de Mussole e jurou lutar até ser abatido...(
PEPETELA, 2000, p. 165)

A confusão mental em que se encontra Mundial, permite a reprodução descontínua e fragmentária da trama narrativa e da história de Mussole. A voz do Sábio ecoa em sua memória, enquanto ele responde a essa voz do momento presente, como se houvesse vivido com Mussole os momentos passados, que haviam sido compartilhados apenas entre a jovem e o Sábio.
Nessa aparição, Mussole pode ser explicada, assim como no caso de Léli, como uma figura fantástica, provocada pela alucinação de Mundial, de tal maneira que se “resolveria” a hesitação fantástica por meio de uma explicação realista, ou seja, produto dos delírios de Vítor.
Ela é definida por meio de alguns vocábulos: "aproximadamente quinze anos, ela é um capim pela sua flexibilidade, é o tumulto profundo que se deixa adivinhar nas águas paradas, é a vida borbulhante na chana.(...)". É, ainda, "terna, gazela mais ligeira que o livongue, antílope de olhos macios mais que o mel escorrendo dos lábios, princesa de ternura escondida". (PEPETELA, 2000, p.150) Construída como técnica para poetizar a trama (TACCA, 1983, p. 121), ela se transformaria em força motivadora que levou o herói, Aníbal, a lutar até a sua suposta morte.
Após o reaparecimento de Aníbal, Mussole habita a praia da Caota, onde o herói ocupa uma casa, no local solitário, no episódio "O polvo". Habitante da mangueira que possui seu nome, Mussole comunica-se com Aníbal por meio do xuaxualhar das folhas da árvore. Demonstra alegria quando Sara e Aníbal se amam.
Nesse caso, prevale o modo fantático, que não se resolve no final da narrativa, quando o animismo africano prevalece sobre os valores da realidade, fazendo com que o leitor ocidental perceba que o sobrenatural encontra-se ali. Mas a personagem Aníbal e também o narrador não tem nenhuma dúvida sobre o “fenômeno Mussole”, o que remete o texto a uma “realidade maravilhosa”, ou “realismo animista”, como prefere Pepetela, e ao gênero do “realismo maravilhoso”.
Figura muda, como uma espécie de pintura que se desloca, Mussole é a personagem delineada, ainda, para relembrar as vítimas da fúria do colonizador em face à guerrilha. A figura terna e delicada da jovem violada e destroçada simboliza o mito de fragilidade vitimada; e funciona como um dos elementos motivadores que mobilizaram os homens a lutarem contra os colonizadores, justificando as ações e o grau de violência que, se necessário, se aplicava, como forma de resgate por ações como as praticadas contra todas as "Mussoles", e consideradas covardes, como seu assassinato.
Mítica e fantástica, Mussole não morre. É a companhia e o amor idealizado do herói, seu complemento espiritual. Enquanto Sara o traz de volta à realidade material, Mussole o inspira à busca de paz e isolamento. Desprovida de voz, resgata a figura da mulher angolana durante a guerra, sujeita às violências sexuais, morais e físicas por parte do inimigo e, ainda, promove na narrativa a relação do herói com o misticismo das sociedades angolanas, seu traço telúrico.
Construída, também, para que a trama apresentasse um tom poético e como motivo de denúncia das injustiças e violências cometidas contra o herói, sua figura presta-se a invadir os delírios de Mundial e os sonhos do Sábio, repousando nos últimos episódios na mangueira do quintal, ao lado de Aníbal: "No entanto, ele sabia, haveria de regar a mangueira, acariciar o tronco e falar com ela, cada vez mais velho e fraco, mais descrente também, na esperança de despertar o espírito das chanas do Leste que nela vivia, dormitando." (PEPETELA, 2000, p.304)

A metáfora do "espírito das chanas do Leste" encontra-se relacionada ao espírito de luta no espaço geográfico compreendido pelas anharas do Moxico, na Frente Leste de combate. Segundo Francisca Maria dos Santos (2001, p.47) "(...) Eram tão freqüentes os combates nas chanas da Frente Leste que os primeiros contatos após o 25 de abril entre forças do MPLA e as tropas portuguesas foram no Lunhaneji, em plena Frente Leste." Assim, a metáfora do espírito das chanas, relacionado ao espírito dos ideais de lutas, vitórias, enfrentamentos, projetando utopias, encontrar-se-ia dormitando ao final da narrativa, assim como o espírito de Mussole, que necessita ser "regado", acariciado, para que não morra, mas sobreviva, embora adormecido.
Se o herói Sem Medo sente um profundo sentimento de culpa com relação a Leli, Aníbal, ao contrário, é capaz de cultivar um sentimento positivo em relação a Mussole por toda eternidade. Essa diferença encontra-se ligada à configuração de Sem Medo, que é um comandante marxista e ateu e à de Aníbal, que é um ex-comandante marxista, porém com os pés calcados no misticismo da cultura religiosa angolana. A imagem de Leli é, portanto, resultado de imagens mentais, enquanto a de Mussole tem consistência metafísica, e produz "efeitos ou ações", como o "xuaxualhar" das folhas da mangueira.
Essas figuras traduzem o preço da revolução, a sandice das oposições, os conflitos internos gerados pela busca da liberdade que só os sobreviventes experimentaram.
Figuras de um passado tão presente, cujas conseqüências abriram feridas profundas na vida de muitos, as figuras de Leli e Mussole guardam, ainda, o traço místico que impregna as tradições religiosas dos povos angolanos. Suas "energias" não se dissiparam após a morte, antes acompanharam os heróis em cada batalha vencida, em cada grito pela liberdade. Tanto que Sem Medo sucumbe quando a figura de Leli que sempre o acompanhou nos momentos anteriores aos ataques, é substituída pela de Ondina.
Belas, sensuais e misturadas às paisagens que as circundam, configuradas com muita poeticidade, as figuras de Mussole e Leli enfeitam as narrativas, produzindo na escrita um colorido especial e um toque de magia, quando um plano paralelo, etéreo, se entrelaça com o plano material, influenciando não apenas os pensamentos dos heróis, mas suas atitudes, seus anseios, seus desejos, seus amores.

1 Deolinda Rodrigues Francisco de Almeida, irmã de Jofre Rocha e sobrinha de Agostinho Neto, nascida em 1942, no Catete/Icolo-e-Bengo, cursou Estudos superiores no Brasil e Estados Unidos, militante do MPLA, poetisa, foi a Fundadora da OMA - Organização da Mulher Africana -, presa pela UPA/FNLA e assassinada por esse movimento em 1968, no Zaire.
2Jackson, 2001, p. 32

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