terça-feira, 4 de setembro de 2012

GREGÓRIO DE MATOS E GUERRA E O PROCESSO DE D. MARIA BERCO NO ROMANCE BOCA DO INFERNO, DE ANA MIRANDA

Rosangela Manhas MANTOLVANI 1

Ana Miranda, escritora brasileira, tem uma série de romances publicados, dentre os quais alguns são históricos. Embora a corrente de romances históricos tenha atingido o seu ápice no século XIX (LUKÁCS, 1965), e já no final do século XX o romance histórico se revelasse em plena decadência, acentuada pelo advento e consagração das Vanguardas Modernistas na Europa, nos últimos anos do século XX, o seu reaparecimento seria acompanhado de profundas marcas e diferenças em relação aos modelos anteriores, seja pela questão estética, seja pela forma como a História oficial é apresentada aos leitores, cujo caráter de oficialidade se apresenta em constante questionamento (MENTON, 1995). Assim, Boca do Inferno, romance publicado pela primeira vez em 1989, traz em seu título a alcunha pejorativa dada ao poeta baiano Gregório de Matos e Guerra por seus desafetos políticos e outros grupos que se constituíram alvos prediletos das sátiras picantes do brilhante advogado. Nascido em Salvador, em pleno século XVII, o filho de senhor de engenho representa, na literatura brasileira, a marca de uma crítica que tanto tem razão de ser naquele momento histórico, como na atualidade. Em Boca do Inferno, Ana Miranda reconstrói a história de Gregório de Matos e Guerra, certamente apoiada em certos escritos compostos à época, sem deixar, no entanto, de fazer jus à fantasia que os romances históricos do século XX projetam em suas configurações estéticas, imaginando com vivacidade a vida que certamente teria levado o satírico subversivo em um país que não lhe reconhecia nem os méritos nem a capacidade, consequência da atitude crítica, com pretensões moralizantes do advogado e poeta diante de uma sociedade corrupta. A intervenção de Gregório de Matos no processo de D. Maria Berco, detalhe ficcional, tem sua encenação certamente suportada em fatos supostamente reais, motivo pelo qual a argumentação do jurista com o desembargador João da Rocha Pita apoiou-se sobre as Leis da época, mais precisamente, sobre as Ordenações Filipinas, pois a cronologia processual coincide com o período da conhecida União Ibérica, fase do reinado da dinastia filipina de Espanha sobre Portugal e todas as suas colônias, inclusive o Brasil. O presente artigo aborda os principais argumentos utilizados por Gregório de Matos e Guerra em defesa de D. Maria Berco, a qual se encontrava detida e precipitadamente condenada à morte.


PALAVRAS-CHAVE: Novo Romance Histórico; Ana Miranda; Gregório de Matos; Ordenações Filipinas; Processo ficcional.

1. Introdução



      Pouco se sabe concretamente da vida de Gregório de Matos e Guerra, embora o advogado e poeta baiano tivesse um biógrafo que reescreveu seu percurso de vida quase um século depois de sua morte. Manoel Pereira Rabelo, o biógrafo, revela em seu livro Vida do Excelente Doutor Gregório de Matos e Guerra o percurso do poeta sucintamente, evocando muitos acontecimentos particulares, tanto no que diz respeito às idéias que teriam originado as sátiras do poeta, quanto sobre o lado pessoal da vida do escritor, especialmente seus infortúnios junto aos poderosos do Brasil. Ele, porém, não se esquece de elogiar o seu biografado sempre que julga ser necessário, exemplificando os casos em que Gregório teria obtido sucessos.
      Fato é que, a abordagem deste artigo não tem como elemento principal a vida do poeta em si, mas a abordagem de episódios ficcionais em que Gregório de Matos e Guerra surge como personagem principal, envolvido em fatos históricos ocorridos na Bahia do século XVII, no romance Boca do Inferno, de Ana Miranda. Nele, as desavenças entre os Ravascos e os Teles de Menezes, sob o governo do vulgo Braço de Prata, constitui o elemento desencadeador do enredo.

     Chamava-se o Governador Antônio de Souza Menezes, mas não era parente dos Teles de Menezes, embora tivessem alianças políticas, entre outras alianças nem sempre prováveis. O assassinato do alcaide Teles de Menezes constitui o episódio ficcional encadeador de uma série de processos e assassinatos ocorridos durante o período do governo de Antônio de Souza Menezes, o Braço de Prata.

 2. A História, a ficção e a aplicação da Lei


Que falta nesta cidade? Verdade.
Que mais por sua desonra? Honra.
Que mais falta que se lhe ponha? Vergonha. (GREGÓRIO DE MATOS)

     No romance Boca do Inferno, o assassinato do alcaide é cometido por oito homens encapuzados, porém somente o nome de Antonio de Brito, personalidade histórica residente na cidade da Bahia (nome com que se chamava a atual Salvador) é mencionado imediatamente, entre outros acusados que vão surgindo ao longo do enredo; e, principalmente, a partir das investigações realizadas displicentemente e de forma aterradora pelo próprio irmão do assassinado, que assume também o cargo do falecido.
       Durante o ataque, o alcaide tivera a mão decepada e Antonio de Brito encarregou-se de recolhê-la. Assim, entregou a mão de Francisco Teles de Menezes a uma personagem ficcional, Maria Berco, uma empregada da casa dos Ravasco, para que ela se desfizesse de uma prova, assim confundindo as investigações. No entanto, ao perceber o anel de muito valor no dedo da mão cortada, Maria Berco desiste de jogá-la no rio com o anel ou mesmo em um depósito de lixo. Retira o anel e o vende a um comprador de jóias. Denunciado, o comprador, nega que tenha roubado o anel. O fato de ter vendido o anel do alcaide faz com que sobre ela recaia um processo por participação no crime, além de ser acusada de prostituição. É pela voz do narrador em terceira pessoa que o leitor toma conhecimento das Leis da época, vigentes em Espanha, Portugal e extensiva às colônias:


O Código que regia as tramitações do direito na colônia, o mesmo de Portugal, era uma recompilação das Leis extravagantes de direito canônico e das Ordenações afonsinas e manuelinas. Esse sumário resultou nas Ordenações filipinas, publicadas no tempo de Felipe I de Portugal – e III da Espanha. (MIRANDA, 1990, p. 237)


       Esse conjunto de Leis segmentava o exercício do direito em função da casta que os indivíduos ocupavam naquele período histórico. Assim, um mesmo delito era considerado em função tanto da gravidade quanto da posição que o sujeito ocupava no interior da sociedade, como garante José Fábio R. Maciel:


A norma editada seguia a estrutura dos Decretais de Gregório IX, dividindo-se em cinco livros que continham títulos e parágrafos: (I) Direito Administrativo e Organização Judiciária; (II) Direito dos Eclesiásticos, do Rei, dos Fidalgos e dos Estrangeiros; (III) Processo Civil; (IV) Direito Civil e Direito Comercial; (V) Direito Penal e Processo Penal. Destaca-se o livro II, que demonstra a principal característica dos direitos do Antigo Regime, ou seja, a existência de normas especiais para cada uma das castas que compunham a sociedade daquele período. (MACIEL, 2006)


      Sobre o rigor destas leis, tanto o romance Boca do Inferno oferece ao leitor o rigor com que eram empregadas, quanto outros estudiosos da História do Direito explicam que esse conjunto de Leis, muitas vezes, repleto de contradições, terminou por interferir na elaboração dos códigos do Direito brasileiro. Assim, José Fábio R. Maciel escreve que:


As penas previstas nas Ordenações Filipinas eram consideradas severas e bastante variadas, destacando-se o perdimento e o confisco de bens, o desterro, o banimento, os açoites, morte atroz (esquartejamento) e morte natural (forca). Mas, como típica sociedade estamental da época, não poderiam ser submetidos às penas infamantes ou vis os que gozassem de privilégios, como os fidalgos, os cavaleiros, os doutores em cânones ou leis, os médicos, os juízes e os vereadores. (MACIEL, 2006)

     Observa-se pelo excerto destacado acima que a Lei nunca fora igualitária para todos, de maneira que a própria história do Direito revela duas medidas diferentes aplicadas às pessoas pelo mesmo delito cometido. Essa tradição só seria interrompida com a Independência do Brasil, quando os decretos das Ordenações Filipinas são pouco a pouco substituídos. Os casos nem sempre poderiam ser julgados pelos escritos das Ordenações, pois havia muitos casos omissos, por isso “os tribunais deveriam ter à sua disposição o texto das Ordenações, o Corpus Iuris Civilis de Justiniano (glosas de Acúrsio) e os textos de Bártolo” (MACIEL, 2006). E, se nenhum destes instrumentos fosse capaz de solucionar a questão, então apelava-se ao Rei.
     Assim, em Boca do Inferno, as duas principais personalidades literárias do século XVII, Gregório de Matos e Guerra e seu contemporâneo, o padre António Vieira, aparecem como personagens histórico-ficcionais do romance de Ana Miranda. Circulando por esse ambiente de hostilidades entre grupos politicamente poderosos, dos quais um e outro terminavam por participar, muitas vezes, de forma decisiva, as personagens histórico-ficcionais criam vida e nos permitem entrever como funcionavam os processos e a aplicação das Leis na cidade da Bahia, capital do pais.
       É na capital São Salvador da Bahia de Todos os Santos, conhecida vulgarmente por cidade da Bahia, que se encontra a Casa da Relação e a Casa da Suplicação.
      Após o assassinato, todos os que mantinham alguma relação com os Ravascos ou com os outros envolvidos, como Antonio de Brito, Luiz Bonicho, Manuel de Barros, além de outros, trataram de esconder-se imediatamente, uma vez que seriam caçados pelo irmão do alcaide morto, pois não se sabia a identidade de todos, de maneira que as investigações trabalhavam com hipóteses, prisões, interrogatórios e torturas. As leis da época permitiam esse tipo de procedimento, ou vamos ao que diz o narrador sobre a aplicação das penalidades:

Os problemas levados ao Tribunal eram o retrato da cidade. O poder ficava restrito a um pequeno grupo, quase sempre impune; a população desobediente quanto às normas de convivência estava sujeita a castigos que iam desde a multa em dinheiro, exílio, galés, até marcação com ferro quente, espancamento, enforcamento e decapitação. (MIRANDA, 1990, p. 254)

     Dessa maneira, o que se pode depreender do texto é que a época estudada contava com a Legislação do Ancién Régime, cuja Revolução Francesa foi capaz de derrubar e, juntamente com a classe que a referendava, a nobreza, as Ordenações também sofreram uma queda. Apesar, porém, dos castigos radicais que eram aplicados em casos de delitos considerados graves, a Metrópole não permitia que suas Colônias contassem com grande número de advogados. Articulando uma crítica à censura da prática do Direito na Colônia, entre outras críticas que o narrador consegue instalar no enunciado, cujos subentendidos podem se detectados com facilidade, o leitor é comunicado sobre fatos históricos que o conduzem a conhecimentos que dizem respeito exclusivamente à área do Direito, a exemplo da relação estabelecida entre o exercício da advocacia no Brasil, que à época era colônia de Portugal e, pela União Ibérica, também da Espanha naquele período histórico, quando o narrador buscando localizar o leitor e oferecer-lhe o panorama histórico em que se encontravam inseridos os suspeitos ou acusados de envolvimento no crime do alcaide, no romance:

Todas as outras capitanias estavam sujeitas à Relação da Bahia. A Coroa rejeitava qualquer proposta no sentido de se criarem tribunais separados em outras regiões, alegando insuficiência de recursos financeiros para o sustento dos juízes. Acreditavam, em Portugal, que o Brasil não deveria possuir grande número de letrados, pois a colônica “necessitava de soldados, não de advogados”. Havia poucos advogados na cidade. Sem o certificado de exame no Desembargo do Paço ou oito anos de estudos em Coimbra não se podia advogar na Bahia. A maior parte dos advogados, porém, impossibilitada de ir à Universidade por não ser de família de muitos recursos, era de sujeitos não formados nem examinados, que burlavam as regras. (MIRANDA, 1990, p. 254).


     Pelo excerto exposto, é possível concluir que um cidadão baiano pobre e sem recursos, em caso de acusação por qualquer crime, dependia de advogados não qualificados para livrar-se do processo, e ainda, em caso de não dispor de bens, encontrava-se sujeito a passar o resto de sua vida na cadeia, sem ao menos contar com um defensor que lhe diminuísse a pena. Apesar disso, o romance descreve uma situação de violência na cidade, haja vista o número de processos enumerados pelo narrador:


Gregório de Matos leu o rol de causas que haviam tido audiência naquele ano. Eram aproximadamente duzentos assassinatos ou ataques criminosos, como morte a punhaladas, a estocadas, a espingarda; cerca de trezentos banimentos, a maior parte sobre negros e mulatos, pois muitos escravos praticavam atos criminosos por ordem de seus senhores, ficando com a culpa; por volta de mil perdões e fianças; mil e seiscentos delitos leves; mil e seiscentas disputas cíveis; testamentos ou negócios do tesouro; mil setecentas e tantas ações criminais no total. Para uma população de cerca de cem mil pessoas era bastante. (MIRANDA, 1990, p. 254)


     Apesar do rigor das Ordenações Filipinas, e dos abusivos honorários dos grandes juristas que se encontravam na Colônia, os quais tinham clientes muito importantes, o povo mais simples não deixava de praticar seus delitos mais ou menos graves, desfavorecendo a vida em uma cidade pequena e afastada das regalias de época às quais se tinha acesso somente na Europa.

3. A personalidade histórica Gregório de Matos e os processos


     Atentando para a biografia do jurista Gregório de Matos e Guerra, publicada por Manoel Pereira Rabelo, entende-se que a formação requintada do filho de senhor de engenho permitiu-lhe fama quando ainda cursava a Universidade de Coimbra, onde se formou. Dessa maneira, alguns dos casos solucionados pelo poeta baiano ficaram na memória de pessoas influentes, as quais se tornaram verdadeiras lendas do jurídico brasileiro e português, mesmo após todas as desconsiderações que sofreu em sua vida o escritor baiano. Uma delas aconteceu quando o jurista ainda atuava em Portugal, como narra Rabelo na biografia:


Defendia este letrado hum pleito acerto titular tão columozo, que o conduzia hum mariolla, quando era necessario. Era cauza civel, sobre a posseção de hum Morgado, e vaticinava o letratissimo Advogado contra a sua parte, e só o contentava com lhe empatar a execução; e neste empenho nenhuá esperãça lhe dava o seu Patrono, e os mais celebrados da corte: mas por animar o affito cavalheiro, rezolveo dizerlhe que fosse ao Doutor Gregorio de Mattos, que só elle era capaz de confiar o remedio paciativo daquella cauza, porque de sua viveza, e sciencia, fiava todo o bom sucesso; dado, que o ouvesse de ter aquelle famozo labyrinto. Aseitou o cavalheyro, a persuação, e conduzido os autos para a caza do nosso Praticante, com os mayores emcarecimentos, que pode então o Fidalgo explicarlhe: Suplicoulhe que com toda atenção chuydado pozece-os olhos naquelle processo, que nelle estava a sua pendição, e que examibnache os meyos, e incidentes para the formar os emburgos, cuja extenção se derigia a compozição com a parte vencedora, por meyo de huá composto converção entre ambos.Era meyo dia quando se despedio o cavalheyro; e não lhe sofrendo descanço o seuy alvoroço; antes da hora de vespera, partio para a caza do seu Advogado novamente eleito, para examinar se se desvellava, ou não com os autos: mas achando-o a janella, palitando sobre o jantar; se afligio bastantemente o cavalheyro: e rompeo em queyxas do pouco cuidado, que lhe dava hum feito de tantas circunstancias e tanta valia, e o que mais o afligia, era o termo deserperamtorio, que se fingava brevemente ssoceguese vossa Excellencia, lhe dice o novo letrado, os autos ja estão vistos, e nelles temos o remedio que tanto dezejava: e muyto mais abantejado; porque neste termo de autuação temos embargos de nullidade a todo o processo. Como pode ser? Replicou o Fidalgo? Porque no anno aqui mencionado corria hum decreto de El Rey Felippe IV de Castella, e III de Portugal, que condenava por nullos todos aquelles processos que principiassem em papel, que não tivesse o sello das armas de castella, ou fosse instromento, ou qualquer papel publico, e como este de que tratamos alcançou aquelle tempo em que se pormulgou o decreto, e nelle, senão acha o sello das armas, tudo o mais nelle contheudo hé nullo. Com esta sutileza se trocaram as fortunas dos pleiteantes, e o nosso novo letrado se acreditou por Aguia de melhor vista; porque formando novos embargos de nuclidade lhe forão recebidos, e afinal se julgarão provados, ficando todo o processado de nenhum efeito, nem vigor, com grande admiração de toda a corte, e mayor aceitação entre os Doutos. Subio a Juis de civel de hum bayro, cujo não teve a certeza do lugar. (RABELO, 2011 – Edição sem revisão – www.filologia.org)

     Usando de recursos que a Lei lhe permitia e conhecendo não somente os Códigos, mas principalmente as exigências da Legislação em relação aos documentos que deveriam ser encaminhados ao Tribunal, Gregório de Matos conseguiu invalidar uma pilha de processos que se arrastavam durante anos, apenas pelo fato de não conterem um selo das Armas (Brasão Real) de Castela, anulando todo o conteúdo do processo. Entre outras atitudes consideradas brilhantes do jurista, encontram-se outros processos que terminaram por constituir lenda sobre sua pessoa, além dos elogios que lhe dedicavam alguns mestres da Universidade de Coimbra, a exemplo do Doutor Belelor da Cunha, de maneira que foi nomeado Desembargador da Relação da Bahia, quando ainda estava em Portugal. Porém, sua justeza ou prática da Verdade acima de tudo, trouxe-lhe sérios problemas. Enviado pelo príncipe regente, D. Pedro I, de Portugal, ao Rio de Janeiro para proceder a devassa contra o Governador do Rio de Janeiro, Salvador Correa de Sá e Benevides, (homem que comandou a esquadra que expulsou os holandeses de Angola), Gregório de Matos negou-se a cumprir tal ordem, o que o colocou em desagrado do poder real, de maneira que perdeu o cargo que ocupava de Desembargador da Relação da Bahia.

       Muito se tem especulado sobre o que de fato teria levado Gregório de Matos a recusar tal ordem real, porém, há muitas hipóteses, das quais a mais provável seja o possível respeito que Gregório teria pela figura do governador, ou simplesmente por não considerar o pedido justo. Segundo seu biógrafo, o caráter de Gregório de Matos e Guerra demonstrou sempre um total desprezo por questões práticas, como o acúmulo de capital ou a cobrança de honorários com valores absurdos, o que conota também seu pouco interesse pelo dinheiro. Dessa maneira, as hipóteses relacionadas com o pagamento de seu trabalho, o qual não lhe teria antecipado o príncipe, não parecem ter um suporte legítimo.
      Apesar de grande jurista, a excessiva simpatia de Gregório de Matos e Guerra pela poesia satírica – subgênero poético muito importante no século XVII-, entre outras atitudes morais, trariam ao poeta uma série de inimigos que, com o passar do tempo, aproveitar-se-iam de determinadas situações para incriminá-lo. Dentre as principais sátiras que escrevia, encontravam-se poemas críticos à cidade da Bahia, aos seus juristas e juízes, além de críticas severas ao próprio Governador, o qual era identificado pelo nariz, além de outros detalhes puramente estéticos, como a falta do Braço que perdera em batalha. Sobre os homens que promoviam a justiça na cidade da Bahia, escreveu:

O que nos há de suceder
nestas montanhas
com ministros de leis tão previstos
em trampas e maranhas? (GREGÓRIO DE MATOS)

      É certo que essa crítica de Gregório de Matos procedia, porém, os que se sentiam incomodados por ela, a cada dia tratavam de articular para prejudicá-lo, impedindo que tivesse uma convivência honrada e feliz no meio social em que vivia. De acordo com João Adolfo Hansen (2004, p.14-26), é preciso compreender os motivos da sátira menipéia para compreender a crítica de Gregório de Matos, de tal maneira que certos detalhes que parecem caricaturescos se mostravam em poemas de outros satíricos, como uma maneira de consagrar um certo modelo de crítica que tem origem em Menipo. A ignorância da maioria da população que habitava a cidade da Bahia – e por extensão a Colônia - no século XVII, permitiu que a sátira do poeta fosse excomungada pela Igreja, que tolerava também certas críticas a padres e freiras, os quais Gregório não deixava escapar. Enquanto na Colônia a sátira é vista como uma forma perversa de emendar os costumes, na Europa, escritores como Luís de Góngora e mesmo, mais tarde, Boccage, são apreciados justamente por sua linguagem ferina e pela crítica audaciosa. Assim, certas formas de construir os poemas, bem como determinados detalhes de sua construção na configuração das personagens que aparecem nas poesias satíricas, constituem modelos canônicos de uma estética que aparece formatada pelas formas do cultismo e, certas vezes, do conceptismo, com antíteses, paradoxos, e figuras de linguagem as mais elaboradas. Da  mesma forma como certa escultura setecentista foi capaz de cultuar o feísmo, a construção da sátira não se volta para o belo, o aprazível, o celestial, mas para o feio, o revoltante, o mundano, como uma tentativa materialista de equilibrar um mundo também dividido entre as ações da terra e as promessas do céu. E Gregório de Matos é o poeta brasileiro que se lança à criação das sátiras no formato dos escritos dos grandes satíricos da Europa, contemporâneos seus que produzem uma crítica devastadora dos costumes e do ser.

      A crítica religiosa é uma constante numa época em que a Reforma Religiosa se encontra em plena expansão, logo após a sua implantação, arrebanhando grande número de fiéis que a Contrarreforma busca resgatar. As perseguições católicas aos judeus e hereges, aos cristãos-novos, entre outros não é capaz de agradar a uns e outros. Antes, suscita revolta em alguns, principalmente em intelectuais e artistas. Gregório de Matos é o retrato brasileiro de uma época que não pode ser totalmente compreendida por aqueles que não a viveram. E, na parcialidade da compreensão da história, Ana Miranda presenteia o leitor com Boca do Inferno, em que trata dos amores e da vida de um homem desgarrado da rígida moral imposta pela sociedade e pelas Instituições dominantes, optando por uma outra moral, própria, que lhe permitia viver como melhor aprouvesse.

4. O processo ficcional de D. Maria Berco


     No espaço da fantasia (Forster, 1965), o narrador configura uma personagem que passeará pelos pensamentos do poeta, um sonhador que idealiza essa mulher casada, D. Maria Berco. Assim, citada em uma de suas sátiras, assume um papel de destaque, apesar de constituir-se uma personagem ex-cêntrica. Sem pais, foi criada em orfanato, até que seu marido, o velho e cego João Berco, de lá a tirou mais para servi-lo do que para ser amada, considerando o vocabulário com que a tratava. Por outro lado, Maria Berco jamais lhe fora infiel e, ainda, pensava em dar-lhe melhores condições de vida. Para isso, trabalhava na casa dos Ravascos. Sustentada sobre essas argumentações, a personagem é solicitada a desaparecer com a mão do alcaide assassinado. Não resistiu, porém, à tentação, vendendo o anel valiosíssimo, sendo acusada de participação no crime de um homem tão importante.
      Na diegese, Gregório de Matos e Guerra é solicitado pela irmã de Gonçalo Ravasco para a defesa da moça, por isso trata de estudar o caso e providenciar argumentos para livrar D. Maria Berco do processo criminal que a levaria à pena de morte. O narrador, então, oferece os detalhes do processo, já julgado:

Gregório de Matos foi à Relação. Mostrando seu anel de canonista e distribuindo alguns vinténs, teve acesso à sala dos autos. Retirou de uma pilha de processos o de Maria Berco. Apenas quatro páginas, sem defesa, frio e objetivo. Verificou o livro de perdões e fianças. Fez algumas anotações num papel e guardou-o no bolso. Era necessário o número de três votos nos processos que envolvessem pena capital. Os processos demoravam de dois a quatro anos. Em poucos dias tinham concluído o auto de Maria Berco. (…) A sentença não estava assinada, não fora dada entrada à dissensão por escrito. Pelo estilo rebuscado de uma delas, Gregório de Matos reconheceu o autor: Góis. Pela gramática, reconheceu o autor da outra: Palma. Por que tanto rigor? Profissão da ré: meretriz. Calúnia. Acusação: roubo e facilitação de crime de morte. Falso. (MIRANDA, 1990, p. 253)

       Ao constatar as irregularidades do processo, a personagem Gregório de Matos se prepara para tomar providências e o primeiro passo é admitir que algo poderia ser feito para salvar D. Maria Berco, mas o esforço despenhado na tarefa seria “sobre-humano”.   
     Apesar do processo estar repleto de irregularidades, D. Maria Berco já estava há tempo na prisão e as chances de que resistisse viva eram muito poucas, considerando-se o que diz o narrador sobre a situação do julgamento de processos naquele período histórico no Brasil:

(…) Os processos tramitavam com lentidão,. (…) primeiro eram julgadas as causas cíveis; depois as criminais; por último os assuntos de interesse da Coroa. As causas cíveis eram tão volumosas que jamais sobrava tempo para as demais. Em consequência, os que respondiam processos criminais degeneravam-se nas cadeias, morrendo grande parte por doenças, fome. Os carcereiros mantinham um próspero mercado de extorsão às famílias dos acusados e poucos prisioneiros podiam receber ajuda à Irmandade da Misericórdia, que procurava ampará-los. (MIRANDA, 1990, p. 255).

     Ou seja, de acordo com o excerto, as chances de qualquer prisioneiro sair com vida da cadeia eram remotas. Por isso, Bernardina Ravasco teme pela vida do pai, Bernardo Ravasco, preso logo após o assassinato do alcaide Francisco Teles de Menezes. Mas a preocupação da personagem Bernardina Ravasco é desdobrada, a partir da prisão de Maria Berco, uma vez que esta restou como sua companhia e, detida, nada poderia lhe valer em sua enfermidade. Autorizada por António de Souza de Menezes, a prisão da filha de Ravasco também estava decretada. Assim, seguem-se uma série de prisões arbitrárias.

      Uma vez condenada a personagem D. Maria Berco nos autos do processo, é Bernardina Ravasco quem procura a personagem Gregório, solicitando maneira de interpor recurso.
      O jurista decidiu, então, apelar para João da Rocha Pita, à época desembargador da Relação da Bahia, o qual teria a incumbência de solucionar o caso, uma vez que os desembargadores Rocha e Palma estariam demasiadamente envolvidos com a parte vitimada e eram desafetos dos Ravasco.       Assim, o padre Antonio Vieira, que era o irmão de Bernardo Ravasco adiantou-se, solicitando a Portugal uma investigação justa.    
        A personagem Gregório de Matos e Guerra dirige-se, então, à residência da personagem Rocha Pita, com o intuito de interceder por D. Maria Berco: “jamais viria interceder por mim, pois conheço sua isenção e senso de justiça” (...), diz Gregório a Rocha Pita. Na ocasião, na diegese, Rocha Pita relembra o feito de Gregório de Matos em Portugal sobre o processo já comentado neste artigo.

O que pretende de mim? Vim para falar a vossenhoria sobre uma dama que está condenada à forca. Dona Maria Berco. Sim, já fiquei sabendo do caso. Qual é seu interesse? Não tenho nenhum interesse pessoal, senhor. Apenas sei que se cometerá uma injustiça, enforcando-a. É apenas uma opinião pessoal. Os juízes não consideram assim. Postule! Sei disso, Senhor, disse Gregório de Matos. Sei, também que a Relação é capaz de, por interesses de poderosos, aplicar a uma pessoa penas que muito excedam a seriedade de seu delito. Crime. Crime. O poder das autoridades legais muitas vezes ultrapassa a força da Lei. Os erros judiciais não são redimidos. Todos os degraus da burocracia judicial, juízes, letrados, escrivães, tabeliães, parecem ter sido cortados do mesmo tecido. Não preciso ouvir nada disso, a voz de Rocha Pita tornou-se áspera. (MIRANDA, 1990, p. 257)

    O diálogo com Rocha Pita aponta muito mais as faltas da justiça na Bahia do século XVII do que propriamente uma ausência de Justiça. Ou seja, a autoridade ou autoritarismo do Ancién Régime sempre ultrapassou a força da Lei. A metáfora sobre as autoridades do Judiciário, “terem sido cortados do mesmo tecido” indica a falta de isenção de certos integrantes, quando não se redimiam os erros judiciais.
     Rocha Pita investe verbalmente contra Gregório, dizendo-lhe que conhece bem a verve de sua sátira e declara, citando os escritos do poeta: “Não considero que toda a justiça seja injusta, vendida e abastardada, como afirma.” (MIRANDA, 1990, p. 257).

     Apelando a uma justiça “igual para todos”, como princípio inquestionável, Gregório de Matos diz a Pita que esteve na Relação e examinou o processo, verificando que não lhe foi dado a possibilidade de fiança. E questiona “por que não”? Apela, então, para casos similares, em que os precedentes indicam que senhoras que cometeram delitos semelhantes foram soltas sob fiança, recebendo cartas de seguro, permissão para ficar em liberdade, ou mesmo perdão. Para isso, bastava que tivessem esposo, pai, ou irmão, que intercedessem em seu favor. Mas no caso de Maria Berco nenhuma alternativa foi deixada.
     O nível da argumentação enfrenta a acusação formal de Rocha Pita:

        “Ela não cometeu nenhum crime. Apenas foi ingênua ao aceitar dar um fim à mão decepada do alcaide.
Quem pode garantir que ela sabia de quem era aquela mão? Qualquer mão decepada sugere um crime.
E ela roubou o anel. Não pensou nas consequências de seus atos. Não soube ela pensar. Nem poderia pensar.
Participou do crime. Favoreceu-o. Isso também é um crime. Não se trata de um castigo enigmático e uma culpa a decifrar. Tudo está muito claro.(...)
O delito dela não é grave. Sua participação teve um caráter de subordinação.
Esclareça!
Eu poderia alegar que ela encontrou entre dejetos da rua a sinistra mão decepada, o que se poderia referir em última instância. Mas serei honesto com Vossenhoria. D. Maria Berco era dama de companhia da filha de Bernardo Ravasco, e este lhe ordenou a ocultação. Tomou ele em sua responsabilidade o destino da mão do alcaide para evitar gestos desumanos por parte dos matadores. O secretário, aliás, inocente da morte, está a definhar na enxovia. (MIRANDA, 1990, p. 257-8)

     Gregório , então, lembra a Rocha Pita que todos os homens supostamente envolvidos no crime do alcaide Teles de Menezes têm aparecido mortos ou estão presos, além de outros que desapareceram, de maneira a não se poder saber se estão vivos ou mortos. E o faz lembrar que o assassino dessas pessoas está solto e sem nenhum julgamento, assim como o governador Antônio de Souza Menezes, que o apoia.
      Apesar dos argumentos do jurista, Rocha Pita diz que nada pode fazer em relação ao processo dessa senhora, D. Maria Berco, dada a gravidade de seu envolvimento no crime. Gregório compara o auto de Maria Berco a uma doença. Rocha Pita o contesta:

Não é uma doença. É um auto. Prossiga! Um auto que lembra o julgamento de Cláudio no tribunal de Easco. Pior, disse Gregório de matos. Os governadores também são homens sujeitos ao amor e ao ódio. Não é sobre Maria Berco que esse ódio deve desmoronar. Compreendi. Fez uma longa pausa, caminhando pela sala. O esposo da tal senhora pode interceder por ela e pagar a fiança?, perguntou, voltando-se para Gregório de Matos. Tentarei, senhor desembargador. Preciso de alguns dias para obter o valor da fiança e concordância do esposo. Dois dias, disse o desembargador. Agradeço muito. Sempre me disseram que vossé come apenas nabos fervidos. Não gosto de elogios. Sou apenas normal e não estou no céu. (MIRANDA, 1990, p. 25)

         Observe o processo de argumentação desenvolvido pelo jurista mediante um caso já encerrado, cujo último recurso de apelação só pode ser considerado pelo próprio desembargador. Primeiro, nosso poeta procura “espaços” na Lei que admitissem precedentes em casos semelhantes ao de D. Maria Berco, que, por analogia, se encaixasse o caso de sua protegida, para que o jurista pudesse reivindicar direitos semelhantes, de acordo com determinada classe e, por isso, inicialmente, ele consulta o Livro das sentenças e observa outros casos semelhantes àquele. Ou seja, a jurisprudência. Depois, verifica a possibilidade de obter um pedido de apelação, e só então procura o marido de Maria Berco para convencê-lo de que deve tirar a esposa da enxovia. Veja parte do diálogo que o narrador de Ana Miranda articula no romance:

(...) Temos uma maneira de livrá-la da forca. Temos? Podes assinar a fiança? A fiança e mais as despesas todas somam por volta de seiscentos mil réis. (...) Solicitas a mercê [ao governador] se eu pagar? [disse Gregório de Matos] Se ela voltar para mim solicito, disse sem hesitar. (...) Não achas que é arriscado para mim? (...) Sei em que está metida, coisas pesadas, coisas do inferno. (...) Não há risco nenhum, João Berco. Os maridos lutam por suas esposas no Tribunal. Fazem parte de seus patrimônios. (...) (MIRANDA, 1999, p. 261)

    Assim, o velho João Berco consegue uma audiência com o Governador e após a súplica, obtém o benefício solicitado. Satisfeito de haver feito um bom negócio, o velho retorna a casa e, antes que Maria Berco chegue da enxovia, o velho cego é encontrado assassinado, com um cofre aberto ao lado, de onde o assassino teria levado o dinheiro. Avaro, João Berco teria economizado a vida toda, fingindo-se pobre, ou o cofre seria uma maneira de despistar os verdadeiros assassinos?

     Desta feita, a dama de companhia de Bernardina Ravasco, Maria Berco é presenteada pelo jurista que aciona todo o seu conhecimento e brilhantismo sobre o Direito para livrá-la da forca.
       Após libertá-la, a dama de companhia dos Ravasco vai embora. Passa, então a sonhar com a realização daquele amor até então passional em pleno Recôncavo, onde passa os últimos anos de sua vida, após o retorno do exílio que sofrera em Angola, por motivos de perseguição religiosa e política.

5. Conclusões


       Apresentamos nestas páginas somente algumas considerações a respeito das maneiras como os processos eram conduzidos no Brasil-Colônia à época de Gregório de Matos e Guerra, porém o que procurou evidenciar-se neste trabalho é a importância da participação de Gregório de Matos e Guerra, cujo brilhantismo de suas defesas nos proporciona a melhor face do jurista. Embora o processo apresentado na narrativa seja ficcional, não há grande diferença entre as estratégias utilizadas por Gregório de Matos em outros processos reais e históricos, que a ele atribuíram fama, tanto em Portugal quanto no Brasil Colônia, dada a rapidez das decisões e a capacidade de tornar causas consideradas impossíveis e labirínticas em algo facilmente resolvido.
      O caso Maria Berco funciona na narrativa não somente para revelar o lado essencialmente jurista de primeira linha de Gregório de Matos, mas principalmente a faceta humana de um homem que parece apaixonado, certamente o “eu-poético” dos poemas lírico amorosos mais intensamente belos, escritos pelo Boca do Inferno que, muitas vezes, também se tornava o “Boca do Céu”, ao escrever belos poemas sacros, especialmente a Jesus, ou os lírico-amorosos, dedicados a mulheres angelicais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.

MACIEL, José Fábio Rodrigues. “Ordenações Filipinas- considerável influência no direito brasileiro”. Jornal Carta Forense. 4/09/2006.

MATOS, Eunice de. Ficção e História no Romance Boca do Inferno. Dissertação de Mestrado - Curso de Pós-Graduação em Letras - Estudos Literários - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2003. Orientação: Profª Drª Marilene Weinhardt.

MENTON, Seymour. La nueva novela histórica de la América Latina (1979 - 1992). Mé x i co : Fondo de Cultura Econômica, 1993.

MIRANDA, Ana. Boca do Inferno. (romance). São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

RABELO, Manoel Pereira. Vida do Excelente Poeta Lírico, o doutor Gregório de Matos e Guerra. Em: www.filologia.org Sites consultados http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_lit/index.cfm?fuseaction=biografias_texto&cd_verbete=4952&cd_item=35 http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=484.