Perrault, Charles
/ ILUMINURAS
Sinopse
O escritor francês Charles Perrault criou as bases de um novo gênero que
faria história: o dos contos de fadas. Nesse mundo fantástico, fadas, elfos,
ogros e outros malvados convivem com heróis e heroínas plenos de virtudes.
Personagens que ao triunfar são capazes de perdoar. Seus textos mais famosos
inauguraram essa literatura que faz até hoje crianças e adultos viajarem pelo
reino da fantasia: Chapeuzinho Vermelho, Barba Azul, o Gato de Botas,
Cinderela, o Pequeno Polegar, a Bela Adormecida e tantos outros. O escritor
resolveu registrar as histórias que ouvia quando criança para contá-las aos
próprios filhos. Clássicos entre os clássicos, estes contos possuem traços e
símbolos que remetem aos primórdios da humanidade, quando os homens sentavam-se
ao redor do fogo para contar as suas histórias, e assim expurgar seus medos e
fantasmas. (IN: HTTP://www.livrariasaraiva.com.br)
Além de
Perrault, algumas escritoras podem ser destacadas, como Marie-Catherine d'Aulnoy, com seus Contes de Fée
(Contos de Fadas), e ainda os de Madame La Prince de Beaumont, que publicou os
seguintes contos, o conhecido A Bela e a Fera, o qual foi traduzido
para quase todas as línguas, e que ainda encanta crianças em todo o mundo.
Produzido
em DVD e filme, A Bela e a Fera tem
recebido ênfase especial sobre sua representação alegórica e, na
contemporaneidade, como um objeto simbólico que representa a possibilidade de
convivência e até amor na diversidade.
Também a
publicação de As aventuras do Barão de Munchhausen, de um Anônimo, publicado
por Rudolpho Erich Raspe foi um grande sucesso em Londres, em 1785.
Segundo Afrânio Coutinho (1971, p. 187), “são
histórias inverossímeis e fabulosas patranhas desse barão, que serviu no
exército russo e cujo nome ficou sinônimo de mentiroso.” Em seu livro, as
aventuras do barão incluíam situações fantásticas, como
viagens em balas de canhão, viagens à Lua e uma fuga de um pântano, puxando-se a si mesmo
pelos próprios cabelos.
As Aventuras do Barão de Munchausen
Sinopse
O Barão Munchausen chamava-se Karl Friedrich
Hieronymous e viveu entre 1720 e 1797. Ele serviu no exército russo, participou
de duas árduas campanhas contra os turcos e foi promovido a capitão de
cavalaria em 1750. Por volta de 1760, retira-se para a propriedade rural da
família em Bodenwerder, Hanover. Foi lá que passou a receber amigos e hóspedes,
a quem tinha grande prazer em contar suas aventuras de guerra, caçadas e
viagens, mas retocadas com as mais extravagantes mentiras, isso sem esboçar nem
um sorriso; com tal naturalidade que quem não o conhecia chegava a acreditar
nele. Quem transformou em livro suas histórias foi um bibliotecário e cientista
chamado Rudolph Erich Raspe, nascido em Hanover, em 1737. Era conhecido por sua
versatilidade intelectual, pois escrevia profusamente sobre todo tipo de tema.
Tendo se apropriado de objetos da importante coleção pela qual era responsável
e que pertencia a seu patrão, o landgrave
de Hesse, foge para a Inglaterra. Em Londres, graças a seu domínio do
inglês aliado a seus vastos conhecimentos, publicou livros sobre vários
assuntos para ganhar a vida, mas está sempre em apuros financeiros: chega até a
ser preso por não poder pagar o alfaiate. Essa difícil situação mais o fato de
que sua péssima reputação o alcançou em Londres, faz com que ele se mude para a
Cornualha, onde põe em prática seus conhecimentos de mineralogia trabalhando em
uma mina. Foi lá que, sempre atrás de dinheiro, escreve As Aventuras do Barão, a quem é muito provável que tenha conhecido
pessoalmente quando vivia em Gottingen, perto de Hanover. Escrito o livrinho,
preocupado com assuntos mais sérios, nem deve ter pensado mais nisso.
(In: http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/3063388/as-aventuras-do-barao-de-munchausen/?ID=BB347B857DB04160C2E1E0203&PAC_ID=33656)
No século
XVIII, algumas publicações muito importantes marcariam os rumos de uma
literatura que se preparava para atender a uma nova classe que aparecia no
espaço da leitura: os filhos da burguesia emergente.
Assim,
com Daniel Defoe, a publicação de Robinson
Crusoé (1719), traria uma faceta nova à literatura juvenil, uma vez que as
aventuras deste náufrago despertariam o interesse de todo um público curioso e
voltado à descoberta de novas informações sobre continentes e ilhas ainda
desconhecidos.
ROBINSON CRUSOÉ (EXCERTO)
PREFÁCIO
Se alguma vez a história das aventuras de um homem pelo mundo
mereceu vir a público e, uma vez publicada, mostrou-se digna de aprovação, o
editor acredita ser o caso deste relato.
Os prodígios da vida desse homem superam (pensa o editor)
tudo de que se tem conhecimento; raramente a vida de um único ser humano se
revelaria capaz de tamanha diversidade.
A história é contada
com modéstia, com seriedade e com a aplicação religiosa usual que os homens
judiciosos sempre dedicam aos eventos, ou seja, para instruir os outros
mediante o exemplo e para justificar e honrar a sabedoria da Providência em
toda variedade de circunstâncias, aconteçam como acontecerem.
O editor acredita que se trata de uma história verídica; não
existe nela qualquer aparência de ficção. Julga, no entanto, pois todas essas
coisas são controversas, que o livro será útil tanto para divertir como para instruir
o leitor. Assim, sem mais cumprimentos ao mundo, acredita estar prestando um
grande serviço com a publicação.
Nasci no ano de 1632,
na cidade de York, de boa família, apesar de estrangeira, pois meu pai era um
forasteiro de Bremen que se estabelecera primeiramente em Hull. Ali se tornou
próspero comerciante e, mais tarde, após abandonar os negócios, passou a viver
em York, onde casou com minha mãe, cujos parentes se chamavam Robinson, uma excelente
família daquela região. Por esse motivo fui chamado Robinson Kreutznauer; mas
em virtude da habitual adulteração das palavras na Inglaterra, somos agora
conhecidos e até nós mesmos nos chamamos por Crusoé, assim escrevemos nosso
nome e assim meus companheiros sempre me chamaram.
Tive dois irmãos mais velhos, um dos quais foi
tenente-coronel de um regimento inglês de infantaria em Flandres, outrora
comandado pelo famoso Coronel Lockhart, e morreu na batalha perto de Dunquerque
contra os espanhóis. O que foi feito de meu segundo irmão eu nunca soube, da mesma
forma que meu pai e minha mãe jamais souberam o que me aconteceu.
Sendo eu o terceiro
filho da família e não tendo aprendido qualquer ofício, muito cedo minha mente
começou a povoar-se com devaneios. Meu pai, que já estava muito idoso,
transmitiu-me os melhores ensinamentos que uma educação familiar e uma escola
pública de interior permitiam e encaminhou-me para o Direito. Mas nada me
satisfaria a não ser ir para o mar, e essa inclinação impeliu-me tão fortemente
contra a vontade e até contra as ordens de meu pai, contra todas as súplicas e
persuasões de minha mãe e de outros amigos, que parecia haver algo de fatal
nesse desígnio da natureza que conduzia diretamente à vida de infortúnios e
misérias que estava para me acontecer.
Meu pai, homem sério
e sensato, deu-me sábios e admiráveis conselhos contra o que previa ser meu
desígnio. Chamou-me certa manhã a seu aposento, onde estava confinado pela
gota, e discutiu calorosamente o assunto comigo. Perguntou-me que razões, além
da mera inclinação à vagabundagem, tinha eu para abandonar a casa paterna e
minha terra natal, onde poderia-me tornar conhecido, tendo perspectiva de
construir fortuna com empenho e dedicação, desfrutando uma vida de conforto e
bem-estar. Disse-me que era próprio de homens em situações desesperadoras, de
um lado, ou que aspirassem a destinos superiores, de outro, que partissem em
busca de aventuras, a fim de prosperarem por iniciativa própria e tornarem-se
famosos com empreendimentos extraordinários; que essas coisas estavam ou muito
acima ou muito abaixo de mim; que a minha era a situação intermediária, também
conhecida como posição superior para os humildes, a qual, em virtude de uma
longa experiência, ele concluíra ser a melhor situação do mundo a mais adequada
à felicidade humana, já que não está exposta às misérias e razões, além da mera
inclinação à vagabundagem, tinha eu para abandonar a casa paterna e minha terra
natal, onde poderia-me tornar conhecido, tendo perspectiva de construir fortuna
com empenho e dedicação, desfrutando uma vida de conforto e bem-estar. Disse-me
que era próprio de homens em situações desesperadoras, de um lado, ou que
aspirassem a destinos superiores, de outro, que partissem em busca de
aventuras, a fim de prosperarem por iniciativa própria e tornarem-se famosos
com empreendimentos extraordinários; que essas coisas estavam ou muito acima ou
muito abaixo de mim; que a minha era a situação intermediária, também conhecida
como posição superior para os humildes, a qual, em virtude de uma longa
experiência, ele concluíra ser a melhor situação do mundo a mais adequada à
felicidade humana, já que não está exposta às misérias e não estava exposta a
tantas vicissitudes quanto as outras. Tampouco estava sujeita a tamanhas
inquietudes e perturbações, fosse do corpo ou do espírito, como as que afligem
aqueles que, em razão de uma vida corrompida por vícios, luxos e
extravagâncias, de um lado, ou por causa do trabalho duro, da falta dos meios
necessários e da alimentação pobre ou insuficiente, de outro, atraem sobre si
próprios muitos transtornos como conseqüência natural de seu modo de vida.
Assegurou que a situação intermediária se adaptava na medida certa a todas as
virtudes e todo tipo de satisfação; que a paz e a fartura eram servas de uma
fortuna mediana; que a temperança, a moderação, a tranqüilidade, a saúde, o
convívio social, todas as diversões agradáveis e todos os prazeres desejáveis
eram benesses que advinham da situação intermediária na vida; que assim os
homens passavam silenciosa e suavemente pelo mundo e dele saíam com conforto,
sem se deixarem enredar pelo trabalho das mãos ou da mente, sem se venderem a
uma vida de escravidão em troca do pão de cada dia, ou se atormentarem com
circunstâncias desconcertantes, que roubam a paz à alma e o descanso ao corpo,
sem se enfurecerem com a paixão da inveja ou com a secreta e abrasadora luxúria
da ambição por grandes realizações. Ao contrário, deslizavam calmamente pelo
mundo em circunstâncias fáceis e saboreavam com sabedoria as delícias de viver
sem amargura, desfrutando a própria felicidade e aprendendo pela experiência
cotidiana a conhecê-lo de modo mais sensato.
Dito isso, insistiu
veementemente, e da maneira mais afetuosa, para que eu não me comportasse como
um inexperiente, não me precipitasse em desgraças que a natureza e a posição
social em que nascera pareciam-me haver poupado; que eu não precisava lutar por
meu sustento; que ele cuidaria bem de mim e não mediria esforços para
conduzir-me auspiciosamente à situação na vida que acabara de me recomendar;
que se eu não me sentia à vontade e feliz no mundo era por culpa exclusivamente
minha ou do destino, e que ele não teria nada por que se responsabilizar, pois
cumprira o dever ao advertir-me contra atitudes que ele sabia que me seriam
prejudiciais. Em suma, assim como faria muitas coisas boas para mim caso eu
permanecesse em casa e me estabelecesse conforme sua orientação, também não
iria contribuir para meus infortúnios encorajando-me a partir. Disse-me ainda
que eu tinha como exemplo meu irmão mais velho, com quem usara os mesmos e
veementes argumentos para dissuadi-lo de ir à guerra dos Países Baixos, sem
conseguir convencê-lo, pois seus impulsos juvenis incitaram-no a alistar-se no
exército, onde foi morto. Embora dissesse que não cessaria de rezar por mim,
atrevia-se, no entanto, a dizer-me que, se eu realmente cometesse esse
desatino, Deus não me abençoaria, e no futuro eu teria tempo suficiente para
refletir sobre como negligenciara seu conselho, num momento em que talvez já
não houvesse ninguém para ajudar-me em minha recuperação.
Observei, nessa
última parte do discurso de meu pai que era verdadeiramente profético, embora
eu ache que ele próprio não o soubesse , as lágrimas rolarem copiosamente em
seu rosto, sobretudo quando falou de meu irmão que morrera. Ao dizer que eu
teria tempo para me arrepender, e ninguém para me ajudar, ficou tão emocionado
que interrompeu o discurso, dizendo que seu coração estava tão pesado que não
poderia me dizer mais nada.
Fiquei sinceramente
tocado com suas palavras, e de fato, quem reagiria de outra forma? Resolvi não
mais pensar em partir, mas ficar em casa e estabelecer-me conforme o desejo de
meu pai. Mas, ah!, em poucos dias tudo isso se desvaneceu, e para evitar outras
insistências de meu pai algumas semanas depois decidi fugir logo de casa.
Contudo, não agi tão impetuosamente como exigia o calor de minha resolução, mas
abordei minha mãe num momento em que a considerei um pouco mais receptiva que
de costume e disse-lhe que minha mente estava de tal forma tomada pela idéia de
ver o mundo que eu jamais me fixaria em qualquer outra coisa com determinação
suficiente para levá-la a cabo, e que meu pai faria melhor dando-me seu
consentimento do que me forçando a partir sem ele. Falei-lhe que já estava com
dezoito anos, que era tarde demais para começar uma carreira como aprendiz de
um ofício ou funcionário num escritório de advocacia, e que estava certo de
que, se assim o fizesse, jamais cumpriria o aprendizado: com certeza fugiria do
mestre antes de aprender a profissão e iria para o mar. Se ela falasse com meu
pai para deixar-me ao menos fazer uma só viagem que fosse, caso não gostasse e
retornasse para casa, eu não tornaria a partir e prometeria perseverar
duplamente na recuperação do tempo perdido.
Isso deixou minha mãe
profundamente encolerizada. Disse-me que seria inútil falar com meu pai
qualquer coisa sobre esse assunto; que ela sabia muito bem quais eram minhas
intenções para consentir com algo tão prejudicial, e que se admirava de como
podia eu pensar em alguma coisa dessa natureza depois da conversa que tivera
com ele e das expressões bondosas e meigas que, ela sabia, meu pai usara
comigo. Em resumo, se eu estava disposto a me arruinar não haveria ajuda para
mim: poderia estar certo que jamais teria o consentimento deles. De sua parte,
ela não contribuiria para minha destruição, e eu jamais poderia dizer que minha
mãe estava disposta a concordar comigo quando meu pai não estava.
Embora minha mãe se recusasse a levar o assunto a meu pai,
ainda assim, como eu soube depois, ela lhe relatou toda a conversa, e meu pai,
após manifestar grande preocupação, disse-lhe com um suspiro: "Esse rapaz
poderia ser feliz se ficasse em casa, mas se partir será o mais desgraçado
entre os miseráveis que jamais nasceram: não posso de forma alguma dar o meu
consentimento".
(...)
Capítulo
Foi só quase um ano depois que fugi,
embora nesse meio tempo continuasse obstinadamente surdo a todas as propostas
de estabelecer-me nos negócios e discutisse amiúde com meu pai e minha mãe,
pois eles se mostravam muito determinados contra minhas inclinações. Mas um
dia, estando em Hull onde eu fora casualmente, e sem qualquer intenção de fugir
nessa ocasião , como dizia, uma vez lá, estando um de meus companheiros prestes
a zarpar para Londres no navio de seu pai e insistindo para que eu fosse com
eles com a costumeira sedução dos marinheiros, ou seja, garantindo que minha
passagem não custaria nada, não mais consultei pai e mãe, nem sequer lhes
mandei avisar. Deixando que soubessem de mim como quisesse o acaso, sem pedir a
bênção de Deus ou de meu pai, sem qualquer consideração das circunstâncias ou
conseqüências, e em má hora, Deus o sabe, a 1º de setembro de 1651, subi a
bordo de um navio com destino a Londres. Acredito que jamais os infortúnios de
um jovem aventureiro começaram mais cedo, ou se prolongaram tanto como os meus.
Mal o navio deixara o Humber, o vento começou a soprar e as ondas cresceram
assustadoramente; como eu jamais estivera no mar, fiquei indescritivelmente
enjoado e em pânico. Comecei então a refletir com seriedade sobre o que fizera,
sobre quão justamente estava sendo surpreendido pelo juízo do Céu, pela forma
perversa como fugira da casa de meu pai e abandonara meu dever. Todos os bons
conselhos recebidos, as lágrimas de meu pai e as súplicas de minha mãe
retornaram vividamente ao meu espírito, e minha consciência, que ainda não fora
reduzida ao grau de insensibilidade que atingira desde então, censurou-me por
desprezar o conselho e transgredir o dever para com Deus e com meu pai.
Tudo isso enquanto a tempestade
recrudescia, e o mar, no qual eu nunca estivera antes, subia muito alto, embora
sequer se comparasse com o que vi muitas vezes mais tarde. Não, nem com o que
vi poucos dias depois, mas naquele momento foi o bastante para impressionar-me,
eu que não passava de um jovem marinheiro e jamais soubera coisa alguma a esse
respeito. Temia que cada onda fosse nos engolir, e sempre que o navio caía,
como eu pensava, no abismo cavado pelas ondas, achava que não viríamos mais à
tona. Em meio a essa agonia fiz muitas juras e promessas: se Deus houvesse por
bem poupar-me a vida nessa única viagem, se um dia eu tornasse a pôr o pé em
terra firme enquanto vivesse, iria diretamente para a casa de meu pai e jamais
me precipitaria de novo em desgraças como essas. Agora eu enxergava claramente
o acerto de suas observações acerca da situação intermediária na vida, como ele
vivera todos os seus dias com tanto sossego, tanto conforto e jamais fora
exposto a tempestades no mar ou dificuldades em terra; e resolvi que, como um
verdadeiro pródigo arrependido, retomaria à casa paterna.
Estes sábios e sóbrios pensamentos
prolongaram-se durante todo o tempo que durou a tempestade, na verdade, um
pouco mais, mas no dia seguinte o vento amainara, o mar estava mais calmo, e
comecei a habituar-me com ele. No entanto, eu estava muito abatido em razão de
tudo que me acontecera no dia anterior e também ainda um pouco indisposto. Mas
ao fim da tarde o tempo clareou, quase não havia mais vento, e seguiu- se um
lindo e agradável entardecer. O sol se pôs perfeitamente claro e assim se
ergueu na manhã seguinte. Havendo pouco ou nenhum vento, o mar tranqüilo e o
sol luzindo acima dele, o panorama pareceu-me o mais encantador que já me fora
dado vislumbrar.
Eu
dormira bem à noite e agora já não estava enjoado, ao contrário: cheio de
ânimo, olhava maravilhado para o mar, tão encrespado e terrível no dia anterior
e capaz de mostrar-se tão plácido e agradável pouco tempo depois. Então,
temendo que perseverasse nos meus bons propósitos, meu companheiro - que na
verdade me instigara a partir - aproximou-se de mim.
-
Então, Bob - diz ele, apertando meu ombro -, como é que você está se sentindo?
Garanto que ficou assustado com aquele vento que bateu na noite passada, não?
-
Você chama aquilo de vento? - disse eu. - Foi uma tempestade terrível.
-
Tempestade, não seja bobo - retruca ele -, você chama aquilo de tempestade?
Ora, aquilo não foi nada. Basta termos um bom barco e espaço de manobra e nem
ligamos para um ventinho desses, mas você é marinheiro de primeira viagem, Bob.
Venha, vamos fazer um ponche e esquecer tudo. Veja só que tempo lindo está
fazendo agora!
Para abreviar esta parte lamentável da
minha história, seguimos o velho costume dos marinheiros, o ponche foi
preparado, embriagaram-me com ele, e naquela única noite de inquietude afoguei
todo meu arrependimento, todas as reflexões sobre minha conduta passada e todas
as resoluções para o futuro. Em suma, à medida que a superfície do mar
retornava à suavidade e instaurava a calma com o amainar da tempestade, assim
também, deixando de lado a precipitação de meus pensamentos, esquecidos os
temores e apreensões de ser tragado pelo oceano, e restabelecido o curso de
meus antigos desejos, esqueci por completo as juras e promessas feitas na hora
da aflição. Na verdade, encontrei alguns intervalos para reflexão, e sem dúvida
os pensamentos sérios tentaram, de certo modo, retornar algumas vezes, mas eu
os afastei e recobrei ânimo novo, como quem sai de uma doença. Entregando-me à
bebida e à camaradagem, logo aprendi a lidar com esses acessos, pois era assim
que os chamava, e dentro de cinco ou seis dias conquistei uma vitória tão
completa sobre minha consciência quanto poderia desejar qualquer jovem que
decidisse não ser perturbado por ela. Mas eu ainda haveria de passar por outra
prova; e a Providência, como geralmente faz em casos assim, resolveu deixar-me
inteiramente sem desculpa. Pois se eu não considerasse o que acontecera como
uma salvação, a próxima vez seria tal que mesmo o pior e mais empedernido miserável
dentre nós se veria obrigado a reconhecer tanto o perigo quanto a misericórdia
que lhe eram oferecidos.
No sexto dia de navegação, entramos na
enseada de Yarmouth; como o vento fora contrário e o tempo estivera calmo,
fizéramos pouco progresso desde a tempestade. Fomos obrigados a deitar âncora e
aí permanecemos, pois o vento se manteve contrário, ou seja, de sudoeste,
durante sete ou oito dias, fazendo com que muitos barcos vindos de Newcastle
entrassem no mesmo ancoradouro, como em um porto comum onde os navios poderiam
esperar por um vento para subir o rio.
Não deveríamos, porém, ter permanecido
ancorados ali tanto tempo, e sim subido o rio com a maré. Mas o vento estava
demasiado forte, e, quatro ou cinco dias mais tarde, soprou com muita violência.
No entanto, como a enseada era considerada um bom porto, assim como seu
ancoradouro, e como nossos aparelhos de fundear eram muito fortes, os homens
continuaram despreocupados e nem um pouco apreensivos, passando o tempo inteiro
entre repouso e diversões, segundo os costumes do mar. Mas, na manhã do oitavo
dia, o vento começou a soprar com mais força, e todos os homens tiveram que
trabalhar para arriar os mastaréus da gávea e deixar tudo bem preso e seguro,
de modo que o navio pudesse vencer as ondas com a maior firmeza possível. Ao
meio-dia o mar tomou-se realmente muito encrespado e o barco começou a
mergulhar o castelo de proa nas ondas que o inundavam completamente. Numa ou
duas ocasiões pensamos que a âncora se soltara e o Capitão mandou, então, lançar
a âncora de salvação, de modo que passamos a flutuar com duas âncoras à frente
e os cabos totalmente arriados.
A essa altura a tempestade já era
realmente terrível, e comecei a ver terror e espanto até mesmo no rosto dos
próprios homens do mar. O Capitão, embora atento aos trabalhos de preservação
do navio, ao passar por mim quando entrava e saía da cabine, murmurou diversas
vezes: "Senhor, tende piedade de nós, estamos perdidos, vamos todos nos
desgraçar". Durante essa confusão inicial eu estava atônito, paralisado em
meu beliche, que era no alojamento de proa, e não posso descrever meu estado de
espírito. Mal pude retomar a primeira penitência que ostensivamente desprezara,
e em relação à qual me tornara insensível: acreditara ter deixado para trás o
amargor da morte e que, dessa vez, como da primeira, também nada aconteceria.
Mas quando o próprio Capitão passou por mim, como acabo de dizer, falando que
estávamos perdidos, fiquei terrivelmente apavorado. Levantei-me, saí da cabine
e olhei para fora. Jamais vira cena tão desoladora: montanhas de água
erguiam-se e quebravam-se sobre nós a cada três ou quatro minutos. Ao conseguir
olhar em torno, só pude vislumbrar desgraças. Vimos dois navios próximos a nós,
pesadamente carregados, cujos mastros se quebraram e caíram no mar; e nossos
homens gritaram que um navio a cerca de uma milha adiante havia afundado. Dois
outros barcos, arrancados das âncoras, foram largados à deriva fora da enseada,
mar adentro, sem um único mastro em pé. Os barcos leves safavam-se melhor, já
que não eram tão castigados pelo mar, mas dois ou três desgarrados passaram
perto de nós, afastando-se apenas com vela de espicha aberta ao vento.
Ao
se aproximar o entardecer, o imediato e o contramestre imploraram ao Capitão
que os deixasse cortar o mastro de proa, o que ele muito relutava em fazer; mas
como o contramestre argumentasse que se não o fizesse o navio afundaria, o
Capitão consentiu. Quando cortaram o mastro de proa o mastro grande ficou tão
frouxo e fez o barco jogar tanto que também fomos obrigados a cortá-lo,
deixando o tombadilho nu.
Qualquer pessoa pode avaliar em que
condições estava eu em meio a tudo isso, já que não passava de um jovem
marinheiro e só de leve presenciara antes horror comparável. Mas se posso
expressar dessa distância os pensamentos que então tive, recordo que sentia dez
vezes mais medo por ter abandonado minhas convicções anteriores, trocando-as
pelas que perversamente assumira, do que diante da própria morte. Isso, somado
ao terror da tempestade, lançou-me num estado tal que não tenho palavras para
descrever. No entanto, o pior ainda estava por vir. A tempestade perseverou com
tamanha fúria que os próprios lobos-do-mar reconheceram jamais terem visto algo
semelhante. Tínhamos um bom navio, mas estava muito carregado e afundava tanto
nas ondas que vez por outra os marinheiros chegavam a berrar que iria a pique.
Num certo sentido, foi um alívio não saber o quequeriam dizer com "ir a
pique", até que perguntei. Todavia, era tão violenta a tempestade que
presenciei algo extremamente incomum: o Capitão, o contramestre e alguns
outros, mais sensatos que os restantes, entregues às orações, à espera do
momento em que o barco fosse ao fundo. Durante a noite, e em meio a todas as
nossas demais desgraças, um dos homens que propositadamente descera para
inspecionar o casco gritou que estávamos fazendo água; um outro disse que havia
quase um metro e meio de água no porão. Todos os homens foram então chamados
para a bomba. Ao ouvir essa palavra, meu coração pareceu parar dentro do peito,
e caí de costas ao lado do beliche onde estava sentado, dentro do alojamento.
Contudo, os homens ergueram-me e disseram que eu, até então incapaz de fazer
coisa alguma, podia bombear tão bem quanto qualquer outro. Diante disso,
recuperei o ânimo, fui para a bomba e trabalhei com empenho.
Nesse momento, ao ver alguns navios
carvoeiros pequenos que, incapazes de enfrentar a tempestade, eram obrigados a
soltar as amarras e fazer ao largo, sem se aproximarem de nós, o Capitão mandou
disparar um canhão em sinal de perigo. Eu, que não tinha noção alguma do que
isso significava, fiquei surpreso a ponto de pensar que o navio estivesse
rachando, ou que alguma outra coisa igualmente terrível estivesse acontecendo.
Numa palavra, meu susto foi tão grande que desmaiei. Como isso aconteceu numa
hora em que todos só pensavam em salvar a própria pele, ninguém se preocupou
comigo, nem com o que seria de mim; ao contrário, outro homem adiantou-se para
a bomba, empurrou-me para o lado com o pé e deixou-me ali deitado, pensando que
eu estivesse morto. Muito tempo se passou antes que eu recobrasse a
consciência.
Seguimos trabalhando, mas com a água
subindo no porão era visível que o navio iria afundar, embora a tempestade
começasse a amainar um pouco. Todavia, como não seria possível que ele se
mantivesse à tona até conseguirmos chegar a um porto, o Capitão continuou
disparando tiros de socorro, e um navio pequeno, que agüentara a tempestade bem
à nossa frente, aventurou-se a despachar um bote para nos ajudar. Enfrentou os
maiores riscos para se aproximar do navio, mas era impossível que subíssemos a
bordo ou que eles se aproximassem do nosso costado, até que, afinal com os
homens remando vigorosamente e arriscando as próprias vidas para nos salvar, os
nossos lhes jogaram um cabo com uma bóia por sobre a amurada da popa e o
deixaram correr muito. Depois de muito trabalho e risco, conseguiram pegá-lo;
então nós os puxamos até ficarem bem juntos à popa e descemos todos para o
bote. Era inútil para eles e para nós, uma vez no bote, tentar atingir o
carvoeiro, e concordamos todos em deixar o bote à deriva e apenas direcioná-lo
para a praia tanto quanto fosse possível; nosso Capitão prometeu-lhes que, se o
bote se arrebentasse na praia, ele o deixaria como novo. Assim, um pouco
remando, um pouco à deriva, rumamos para o norte, avançando obliquamente em
direção à praia até quase o cabo Winterton.
Fazia pouco mais de um quarto de hora
que deixáramos o navio quando o vimos afundar, e então, pela primeira vez
entendi o que significava ir a pique. Devo confessar que mal fui capaz de
erguer os olhos quando os marujos me disseram que ele estava naufragando e,
desde aquele momento pois na verdade mais fora eu posto no bote do que entrara
nele meu coração ficara como que paralisado dentro de mim, em parte pelo medo,
em parte pelo horror de imaginar e pensar no que ainda me reservava o futuro.
Enquanto estávamos nessa situação, com
os homem, debruçados sobre os remos tentando aproximar o bote à praia, sempre
que subíamos as ondas podíamos enxergar a costa, onde uma grande quantidade de
pessoas corria para nos socorrer quando lá chegássemos. Mas nosso progresso era
lento em direção à praia, e não conseguimos alcançá-la antes de ultrapassarmos
o farol de Winterton, onde uma ponta de terra quebrava para oeste em direção a
Cromer, aparando um pouco a violência do vento. Por aí entramos e, apesar de
toda a dificuldade, chegamos sãos e salvos à praia. Em seguida caminhamos para
Yarmouth, onde, como homens desventurados que éramos, fomos tratados com grande
humanidade, tanto pelas autoridades da vila, que nos encaminharam a bons
alojamentos, quanto pelos negociantes e armadores, e recebemos dinheiro
suficiente para nos sustentar até Londres ou de volta a Hull, como
desejássemos.
Se
eu então houvesse tido a sensatez de retornar a Hull e ir para casa, teria sido
feliz, e meu pai, um emblema da parábola do Salvador, teria até abatido um
novilho gordo para mim, pois ao saber que o navio em que partira havia
naufragado na enseada de Yarmouth, levou muito tempo para receber qualquer
garantia de que eu não me afogara.
Mas
agora meu destino nefasto já me impelia com uma obstinação a que nada seria
capaz de resistir. Embora muitas vezes ouvisse clara e distintamente os apelos
de minha razão e de meu juízo mais sereno para que voltasse para casa, ainda
assim não achava forças para fazê-lo. Não sei que nome dar a isso, nem
insistirei na existência de uma imperiosa lei secreta que nos compele a
proceder como instrumentos de nossa própria destruição, ainda que ela esteja
diante de nós e para ela nos precipitemos de olhos abertos. Com certeza, nada a
não ser a presença imposta de alguma desgraça inevitável, da qual me era
impossível escapar, poderia ter-me lançado contra os raciocínios sensatos e
argumentos que eram frutos de minhas reflexões mais íntimas, e contra dois
ensinamentos tão evidentes como os que adquirira em minha primeira experiência.
(...)
O que eu imaginava de fato aconteceu.
À minha frente surgiu uma pequena entrada, onde penetrava, com força, o fluxo
da maré. Guiei então minha jangada o melhor que pude para mantê-la no meio da
corrente. Porém, quase sofri um segundo naufrágio, que, caso se efetivasse,
acho que me teria arrasado. Como não conhecia nada da costa, minha jangada
entrou de frente num banco de areia, e como a parte de trás não encalhara, por
pouco toda minha carga não desliza para a extremidade livre da jangada e cai
n'água. Lutei o quanto pude, apoiando as costas nas arcas para mantê-las no
lugar, mas apesar de todos os esforços, era impossível desencalhar a balsa. Por
outro lado, não ousava me mexer da posição em que estava, e assim, sustentando
as arcas com todas as minhas forças, permaneci cerca de meia hora até que a
maré montante veio a nivelar a balsa e, pouco depois, com a água continuando a
subir, minha jangada flutuou novamente, e eu afastei-a do banco para o canal
com o remo que possuía. Finalmente, avançando um pouco mais, alcancei a foz de
um riacho, com terra de ambos os lados e uma corrente forte para dentro. Olhei
para as duas margens em busca de um lugar adequado onde desembarcar, pois não
pretendia me adentrar muito e sim estabelecer-me o mais próximo possível da
costa, na esperança de enxergar algum navio.
Finalmente avistei uma pequena angra
na margem direita do riacho, para a qual, com grande esforço e dificuldade,
dirigi minha jangada, e me aproximei tanto que, tocando o fundo com o remo,
impulsionei-a diretamente para a terra. Mas por pouco não mergulho novamente
toda a minha carga n'água, pois como a margem era muito íngreme, ou seja,
inclinada demais, não havia onde desembarcar, salvo lugares onde uma ponta de
balsa, uma vez na praia, se ergueria tanto que a outra afundaria. Como não
queria pôr em risco a minha carga, esperei até que chegasse a maré alta,
segurando a balsa como se eu próprio fosse uma âncora, para assim mantê-la
encostada à margem, próxima de um terreno mais plano, que eu esperava viesse a
ser coberto pela água. E assim foi. Logo que vi água suficiente, pois a jangada
já flutuava sobre uns 30 centímetros de água, empurrei-a para esse trecho
plano, e aí a firmei, ou atraquei, fincando meus dois remos quebrados no chão,
um de cada lado junto às duas extremidades. Fiquei assim até que a água
refluiu, deixando a jangada e toda a minha carga a salvo na praia.
Minha próxima tarefa era examinar o
terreno e procurar um lugar apropriado para morar, guardar meus pertences e
protegê-los do que quer que lhes pudesse acontecer; ignorava por completo onde
me encontrava, se no continente ou numa ilha, se habitada ou deserta, se ali
existia ou não o risco de animais selvagens. A não mais de um quilômetro e meio
de onde estava, havia um morro alto e escarpado que parecia superar em altura
os demais, dispostos em cadeia a partir dele para o norte. Tirando da arca uma
espingarda, uma pistola e pólvora suficiente, parti para explorar o cume desse
morro, onde, após alcançá-lo a duras penas, vislumbrei, para minha imensa
aflição, o meu destino: estava em uma ilha cercada pelo mar por todos os lados,
sem que houvesse qualquer terra à vista, exceto alguns rochedos ao longe e duas
pequenas ilhas, menores que a minha, situadas a cerca de três léguas para
oeste.
Verifiquei também que a terra era
árida e, tinha boas razões para acreditar, habitada somente por animais
selvagens, apesar de não ter visto nenhum. Avistei, no entanto, uma grande
quantidade de aves, mas desconhecidas para mim, e, mesmo se matasse algumas,
não saberia dizer quais as que poderia ou não comer. Ao regressar, atirei num
grande pássaro que vi pousado em uma árvore à beira de um bosque imenso.
Acredito que a minha foi a primeira arma a disparar ali desde a criação do
mundo. Mal atirei e de todos os recantos dessa mata inúmeras aves das mais
variadas espécies ergueram vôo, soltando guinchos confusos conforme o seu tom habitual,
sem que nenhum me fosse familiar. A criatura que abatera era semelhante a um
falcão, sobretudo na cor e no bico, mas não tinha as garras próprias deste
pássaro; sua carne era impossível de comer.
Como
já havia descoberto o suficiente, voltei à minha jangada e comecei a
transportar o carregamento, o que me ocupou o resto do dia, sem que soubesse o
que faria quando chegasse a noite, nem onde dormiria, pois tinha certo receio
de deitar no chão com medo de alguma fera selvagem, embora, como de fato descobri
mais tarde, não houvesse razão para tais temores.
Contudo,
barriquei-me como pude com as arcas e tábuas que trouxera para terra e fiz uma
espécie de choupana para me abrigar aquela noite. Ainda ignorava a maneira como
iria alimentar-me, pois somente havia visto duas ou três criaturas que
lembravam lebres correndo no bosque onde matara o pássaro.
Ocorreu-me,
então, que ainda poderia retirar muitas coisas úteis do navio, especialmente
cordas, velas e tudo que pudesse ser trazido à terra, e resolvi, se possível,
fazer outra viagem até o barco. Como sabia que a próxima tormenta
inevitavelmente o deixaria em pedaços, decidi adiar todas as demais tarefas até
tirar do barco tudo que pudesse. Ponderei, consultando meus pensamentos, se
deveria levar ou não a jangada, mas isso me pareceu impraticável, de modo que
resolvi ir como da primeira vez, com a maré baixa, e assim o fiz, só que me
despi antes de deixar minha choupana, e fui sem nada no corpo, salvo uma camisa
xadrez, ceroulas de linho e um par de escarpins.
Subi abordo como antes e construí uma
segunda jangada, mas já tendo a experiência da primeira, não a fiz de forma tão
rudimentar, nem a carreguei tanto. Trouxe, contudo, várias coisas úteis.
Encontrei na oficina do carpinteiro duas ou três bolsas cheias de pregos e
cavilhas, um macaco de rosca grande, uma ou duas dúzias de machadinhas e, em
particular, esse objeto utilíssimo chamado rebolo. Reuni tudo, além de várias
outras coisas pertencentes ao artilheiro, como dois ou três pés-de-cabra de
ferro, dois barris com balas de mosquete, sete mosquetes, outra espingarda de
caça e mais uma pequena quantidade de pólvora. Encontrei também uma bolsa
grande cheia de metralha miúda e um rolo grande de chumbo em folha, mas este
último era tão pesado que não consegui içá-lo acima da amurada.
Além disso, apanhei todas as roupas
que pude encontrar, um velacho sobressalente, uma rede e alguma roupa de cama.
Carreguei minha segunda jangada com essas coisas e trouxe tudo a salvo até a
praia, para meu grande alívio.
Fiquei
um tanto apreensivo durante o tempo em que permaneci a bordo, temendo que
minhas provisões fossem devoradas na praia, mas ao voltar não encontrei sinal
algum de visitantes, a não ser a presença de uma criatura semelhante a um gato
do mato, sentada em cima de uma arca, que, ao ver-me, afastou-se um pouco e
então parou, sentando-se muito composta, despreocupada e olhando-me fixamente,
como se pretendesse travar relações amistosas. Mostrei-lhe minha arma, mas como
não compreendeu a razão do gesto, também não se preocupou nem fez menção de ir
embora, diante do que lhe ofereci um pedaço de biscoito, que, diga-se de
passagem, não tinha muito, pois meu estoque não era grande.
(...)
O
DIÁRIO
30
de setembro de 1459.
Eu, pobre e mísero Robinson Crusoé, depois de naufragar durante uma terrível
tempestade em alto mar, vim dar à terra nessa triste e desventurada ilha, que
batizei de Ilha da Desolação. Todos os meus companheiros de viagem se afogaram,
e por pouco também não tive o mesmo destino.
Passei o resto do dia atormentado
pelas sombrias circunstâncias em que fora lançado. Não tinha alimento, casa,
roupas, armas, nem lugar para onde ir. Desesperado, sem que nada pudesse me
consolar, não via outro destino senão a morte: ou seria devorado por feras
selvagens, ou morreria de inanição por falta de comida. Ao anoitecer, subi numa
árvore com medo de criaturas selvagens e dormi profundamente apesar de chover a
noite toda.
1º
de outubro.
Pela manhã, para minha grande surpresa, vi que o barco flutuara com a maré alta
e fora novamente arrastado em direção à costa, aproximando-se muito da ilha.
Por um lado, fiquei satisfeito ao ver que não havia se despedaçado e tive a
esperança de que, assim que o vento amainasse, eu poderia subir a bordo e tirar
dele algum alimento e outras coisas que me seriam úteis. Por outro, a visão do
barco reavivou minha dor pela perda de meus camaradas, e imaginei que, se
tivéssemos permanecido a bordo, nos salvaríamos, ou pelo menos não morreriam
todos afogados como acontecera; poderíamos assim ter feito um bote com os
destroços do navio, e ele nos transportaria para alguma outra região. Passei
grande parte desse dia me atormentando com tais pensamentos, mas afinal, vendo
o navio já quase a seco, fui caminhando dentro d'água até o mais perto que pude
e depois nadei até ele. Nesse dia também continuou chovendo. Mas agora já não
ventava.
1º
a 24 de outubro. Todos
esses dias foram inteiramente consumidos em sucessivas viagens para tirar do
barco tudo o que fosse possível; coisas que em seguida eu trazia para a praia,
numa jangada, aproveitando cada maré enchente. Choveu muito nesses dias, embora
com alguns intervalos de tempo bom. Estávamos, ao que parece, na estação
chuvosa.
(...)
Encontrava-me,
então no vigésimo terceiro ano de minha residência na ilha e estava tão
habituado a ela e ao meu modo de vida que, se tivesse a certeza de
que nenhum selvagem viria me perturbar, teria aceitado passar ali o resto dos
meus dias, ainda que no fim tivesse que me estender no chão e esperar a morte
como o velho bode na caverna. Havia até arranjado algumas diversões e
entretenimentos que me ajudavam a passar o tempo de forma bem mais agradável do
que antes. Em primeiro lugar, como já observei, ensinara meu louro a falar, e
chegou a fazê-lo tão bem, falando com tal familiaridade e clareza, que me dava
grande prazer.
(...)
Vivia num clima constante de angústia
e perplexidade diante da expectativa de que mais dia menos dia cairia nas mãos
de tão impiedosas criaturas. Sempre que precisava sair, olhava atentamente ao
redor, não descuidando um segundo sequer, na hipótese de qualquer
eventualidade. E agora verificava com grande satisfação como havia sido feliz
ao ter reunido um rebanho de cabras domésticas, pois não me atrevia a disparar
a arma, especialmente no lado da ilha onde geralmente apareciam, temendo
alarmá-los. Se os fugentasse num primeiro momento, estava certo que voltariam,
possivelmente com duzentas ou trezentas canoas dentro de poucos dias, e então
saberia o meu destino.
Transcorreu,
contudo, mais um ano e três meses, antes que voltasse a ver os selvagens, como
descreverei a seguir. É provável, no entanto, que tenham vindo uma ou duas
vezes, mas ficaram muito pouco tempo, ou não tive notícia da sua presença.
Porém, no mês de maio, segundo meus melhores cálculos, e no vigésimo quarto ano
de minha residência nessa ilha, tive um estranho encontro com eles, que
narrarei no momento apropriado.
(...)
Chegava
agora ao fim de minhas viagens e em pouco tempo conseguiria reunir toda a minha
nova fortuna, pois as letras de câmbio que trouxera comigo me foram pagas
imediatamente.
Meu
principal guia e conselheiro era a boa e idosa viúva, que, agradecida pelo
dinheiro que lhe enviara, não poupava esforços para me ajudar. Tanta confiança
depositava nela que me sentia absolutamente tranqüilo quanto à segurança dos
meus bens, pois a inatacável integridade daquela excelente senhora conservou-se
a mesma do princípio ao fim.
(...)
As Aventuras de Robinson Crusoé - Daniel Defoe
Produzido para instruir e servir de exemplo, As aventuras de Robinson Crusoé relata a
estadia, por assim dizer, forçada, de um rapaz em uma ilha deserta, onde,
apesar das dificuldades consegue organizar uma existência quase feliz, mesmo
cerceado pela insegurança com que vive em relação aos nativos. Mas é pelo trabalho
contínuo que consegue superar as dificuldades, aliando paciência ao espírito de
invenção inerente a todo ser humano. Resignado às vontades de Deus, termina por
ser reconhecido e sai da ilha em direção à vida em sociedade.
Quanto à outra publicação
importante, trata-se de As Viagens de
Gulliver, de Jonathan Swift, publicado em 1726.
Organizado como sátira à sociedade de época, o
viés do fantástico se mostra presente em episódios diversos, como os dos
pigmeus em Lilliput, dos gigantes de Brobdingnag, dos sábios adormecidos da ilha
de Laputa e dos cavalos que pensam.
LER NA ÍNTEGRA O
TEXTO EM:
A Literatura Infantil é
um produto confeccionado principalmente para a burguesia do século XIX, cujo
aparecimento está relacionado às questões educacionais. O surgimento da classe
burguesa e sua ascensão, logo após a Revolução Francesa, em diferentes países
da Europa, inicia um movimento de frequência maior às salas de aula de Escolas
de Ensino primário e, ainda, maior fluxo dessa classe às salas de ensino mais
avançado. Também aumenta a procura por professores particulares e preceptores.
A Literatura infantil
encontra, então, um campo de expansão que não existia até então, uma vez que
somente a aristocracia e os homens da Igreja tinham acesso a uma formação
contínua educacional. Essa educação laica da burguesa exigia que seus escritos
estivessem de acordo com os novos tempos, ou seja, que apresentassem às
crianças e jovens entes e pessoas capazes de superar obstáculos e de tomar os
rumos de sua vida em suas próprias mãos.
Expressão e arte são
elementos essenciais desses escritos que passam a circular nos meios
educacionais, sejam familiares ou institucionais.
Dois temas são
recorrentes nesses escritos: o maravilhoso e o simbólico. O maravilhoso, surge,
como nos indica Afrânio Coutinho (1971, p. 188), com “figuras imaginárias, fadas, gênios, gnomos, duendes, gigantes, tipos prodigiosos,
objetos mágicos, bichos faladores, e um animismo presente em todo tipo de
objeto, conjecturando um infindável sobrenatural”, fora do tempo
cronológico determinado, porque nas histórias se diz que “foi um dia” ou “era
uma vez”, “certa vez”...
O simbolismo, por sua
vez, permite que todos esses entes possam mover-se no interior de um conceito
de realidade, em que a vida circula concretamente através de uma ordem humana,
de maneira que o esforço e a prática da ética e da moralidade da época conduzam
a finais felizes, edificando a esperança dos infelizes e a fé no destino.
(COUTINHO, 1971, p. 188).
Outros apresentaram às
crianças mundos e universos desconhecidos, como James Mattew Barrie que mostrou
às crianças o mundo mágico de Peter Pan;
e, ainda, Lewis Carol trouxe à baila o encantamento de Alice no país das maravilhas e Alice
no país dos espelhos. Estes figuram como obras-primas no gênero contos de
fadas. Segundo Cecília Meireles
apresentam “uma visão nova da vida, do segredo das leis que nos regem, do poder
oculto das coisas, das relações entre os fenômenos a que estamos sujeitos”.
(MEIRELES, 1951, p. 107. Apud COUTINHO, 1971, p. 188)
Edição 2007
Ilustrada por Fernando Vicente
Editora Salamandra
Ilustrada por Fernando Vicente
Editora Salamandra
Sinopse:
Estranhas folhas de árvore no chão do quarto das crianças,
um menino, vestido de folhas e de limo, que aparece subitamente... Bem que a
intuição da senhora Darling lhe dizia que algo estava para acontecer. Logo,
seus filhos estariam envolvidos numa incrível viagem à Terra do Nunca, onde os
adultos não entram e de onde muitas crianças não voltam jamais! Nenhum pirata
será tão cruel, nenhuma sereia tão sedutora, nenhuma aventura tão emocionante
como aqui, onde tudo tudo começou! O maior clássico de todos os tempos, em
versão integral, traduzida por Ana Maria Machado.
Imagem do filme da Disney
Cartaz do filme Peter Pan,
da Disney World
Cena do filme
Em busca da Terra do Nunca, com Johnny Deep
O sucesso de Peter Pan e os meninos
perdidos da Terra do Nunca, às voltas com o terrível Capitão Gancho não ficam
atrás do sucesso de Alice no País das Maravilhas, também traduzido para muitas
línguas, cujas adaptações, filmes e desenhos animados só fazem aumentar a lista
de suas releituras.
Alice
No País Das Maravilhas - Edição de 60º Aniversário –
Dvd4
Junte-se a Alice quando ela
persegue o Coelho Branco e se aventura no País das Maravilhas, onde encontra
personagens maravilhosos como o Chapeleiro Maluco e o Gato Risonho, entre
outros, nesta edição de aniversário com restauração digital.
Ou o livro, com tradução de Nicolau
Sevcenko, publicado pela Cosac Naify.
Alice No Pais Das Maravilhas
Autor: CARROLL, LEWIS
Ilustrador: ZERBINI, LUIZ
Tradutor: SEVCENKO, NICOLAU
Editora: COSAC NAIFY
Assunto: LITERATURA ESTRANGEIRA - ROMANCES
Autor: CARROLL, LEWIS
Ilustrador: ZERBINI, LUIZ
Tradutor: SEVCENKO, NICOLAU
Editora: COSAC NAIFY
Assunto: LITERATURA ESTRANGEIRA - ROMANCES
Cena do filme Alice no País das Maravilhas
http://www.disney.com.br/filmes/dvd/alicenopaisdasmaravilhas/
Embora não tivessem sido
produzidos para crianças, os contos dos irmãos Grimm foram recebidos pelos
pequenos com grande interesse e entusiasmo e são, ainda nos dias atuais
traduzidos, reproduzidos e adaptados em muitos países do mundo, a exemplo do
Brasil.
Entre
os escritos mais conhecidos dos Irmãos Grimm (Jacob Grimm, Wilhelm Grimm),
podemos citar os contos maravilhosos (apresentam elementos e personagens mágicas); as fábulas (histórias
vividas por animais); as lendas (histórias epopéicas em
que o elemento mágico é também divino); os contos enigmáticos ou misteriosos
e os humorísticos.
Entre os maravilhosos, os mais conhecidos são: Branca de Neve; Cinderela; O Flautista de Hamelin; O Ganso de Ouro; O Príncipe Sapo; Rumpelstichen; A Bela Adormecida; Rapunzel; as fábulas são: O Lobo e as Sete Cabras; Os Sete Corvos; e os alegóricos são: João e Maria; Chapeuzinho Vermelho; além de outros exemplares: O Alfaiate Valente; Os Músicos de Bremen; Os Três Fios de Ouro de Cabelo do Diabo; Hansel e Gretel; entre outros.
Em 1880, Eça de Queirós, ao escrever para o jornal Gazeta
de Notícias, do Rio de Janeiro, destacava a importância de uma “verdadeira
literatura para crianças” que encontrou na Inglaterra, segundo ele em nada
devedora à literatura dos adultos, entusiasmado com a época natalina, quando os
livreiros se tornam um paraíso para os jovens que ali vão comprar as
publicações que tanto lhes agradam. (QUEIRÓS, 1947, p. 45-7; apud COUTINHO,
1971, p. 188).
Na Dinamarca, Hans Christian Andersen criou o Gênero
Literatura Infantil, tanto que colheu as
estórias na tradição oral e não somente as divulgou, mas transformou-as para a
linguagem das crianças, cuja mentalidade comprendeu com certa disposição para
conceituas irrealidades que tanto atrai e fascina. Extraindo seus contos da
literatura oral que circulava no imaginário popular, inventou com qualidades excepcionais
no sentido da descrição da natureza, sendo capaz de conciliar a realidade com a
fantasia, dando uma lição constante de que é preciso vencer os perigos e os
tropeços da vida pelo esforço.
O emprego do conto folclórico na composição literária, não
somente usando o folclore, mas trabalhando questões de estética e arte, assim
como ele o fez. Foi justamente o aspecto da adaptação das histórias e do
imaginário popular ao gosto e à linguagem da infância que possibilitou o
nascimento do novo gênero, o qual haveria de migrar dos países europeus,por
meio de traduções e adaptações, para o Brasil.
Quanto aos estudos sobre as produções literárias, listas
de publicações começaram a ser organizadas.
Em 1910, Antti Aarne publica o primeiro
catálogo sistemático sobre contos, inventariado e classificado segundo normas
histórico-geográficas. Em 1928, o folclorista americano Stith Thompson completa
e aumenta esse catálogo, e a cada ano inclui novas versões. Em
1961, o livro é reeditado consideravelmente ampliado e pretende ser um catálogo
sistemático de todos os contos populares do mundo. (Abramowicz, Anete Contos de Perrault,
imagens de mulheres. In: Cad. CEDES vol.
19 n. 45, Campinas, SP, July 1998. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?Ing=en)
continua com A FORMAÇÃO DA LITERATURA INFANTIL NO BRASIL
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