domingo, 14 de novembro de 2010

As alegorias das embarcações em García Márquez e José Saramago

AS ALEGORIAS DAS EMBARCAÇÕES EM GARCÍA MÁRQUEZ E JOSÉ SARAMAGO

MANTOLVANI, Rosangela Manhas

Resumo: Entre as inúmeras publicações de Gabriel García Márquez, encontra-se a ficção A última viagem do navio fantasma (2001), ilustrada por Carmem Solé Vendrell, texto que possui a estrutura do conto, considerado literatura para jovens ou adultos. Este trabalho articula uma comparação do texto de Márquez com o de José Saramago, O conto da Ilha Desconhecida (1998), ilustrado por Arthur Luiz Piza. Nessas construções, apresentam-se diferentes tipos de alegorias (Todorov, 2006), as quais permitem leituras que conduzem a interpretações capazes de refazer percursos existenciais, pela condução dos protagonistas, na direção da idealização de realidades, em que a presença de elementos do mágico e do maravilhoso se condensa nas imagens diferenciadas das embarcações, cujas imagens do mar se mostram sob diferentes visões, interferindo na vida tanto de um quanto de outro protagonista. Em ambos os textos as imagens das embarcações tornam-se pouco a pouco elementos que insinuam realidades aparentemente contrastantes: uma embarcação torna-se um porto seguro, uma ilha capaz de abrigar a existência, enquanto outra se torna a imagem do inseguro, do desconhecido e cada vez mais absurdo, funcionando no plano da instabilidade das coisas irreais.

Palavras-chave: Literatura Comparada. Conto. Saramago. García Márquez. Alegoria.


Os contos

O conto tem origem tão remota que se perde na própria história da literatura. De acordo com Nádia B. Gotlib (2006, p. 6), “para alguns, os contos egípcios - Os contos dos mágicos - são os mais antigos: devem ter aparecido por volta de 4 000 anos a.C.”; enquanto Walter Benjamin indica que o conto se organizou estruturalmente na oralidade, como forma que teria dado origem aos primeiros contos escritos. Ele afirma que:

o grande narrador terá sempre as suas raízes no povo, em primeiro lugar nas camadas artesanais. Mas assim como essas abrangem os artífices camponeses, marítimos urbanos, nos mais diversos estágios do seu desenvolvimento econômico e técnico, também se graduam muitas vezes os conceitos, nos quais é transmitido o resultado de sua experiência. (BENJAMIN, 1975, p. 77)

Assim, o conto, como forma curta de expressão, parece existir desde o momento em que o homem arquitetou as primeiras histórias para as crianças ou para a tribo e revelou uma forma de comunicação que garantia com um sentido primeiro a possibilidade de sentidos diferentes daquele que, de fato, enunciava.
Percorrer a história do conto é percorrer a história da própria arte de comunicar na História da humanidade. Assim, o conto oral, ao obter registro escrito, passa a ter maior valorização após o século XIV, quando os contos eróticos de Bocaccio - em seu Decameron (1350), rompem com o moralismo didático característico de grande parte dos contos, e são traduzidos para várias línguas.
Com relação ao que é o conto, como gênero, encontra-se uma polêmica fundamental que se organiza em torno das questões da Teoria da Literatura, à qual alguns estudiosos tentaram responder. Entre estes, há os que se posicionam em função da possibilidade de uma teoria do conto; e os que acreditam simplesmente que o conto não se enquadra em qualquer forma que possa ser definida ou mesmo teorizada.
Brémond (1973), ao analisar as narrativas, observa que toda narrativa possui três características essenciais: a) uma sucessão de acontecimentos, pois há sempre algo a narrar; b) que os acontecimentos são de interesse humano: pois tratam de nós, são para nós, falam acerca de nós; e esses acontecimentos ficcionais só tomam significação quando dizem respeito a um projeto humano, organizados de forma estruturada; c) os acontecimentos devem estar dispostos na unidade de uma mesma ação.
O conto, embora apresente uma sucessão de acontecimentos, não possui qualquer compromisso com a veracidade, pois não se ajusta a uma convenção de veracidade, mas de ficcionalidade. Segundo Mignolo, na convenção de ficcionalidade, os receptores entendem que: a) o enunciador não se compromete com a verdade do “dito” pelo discurso (por isso, o enunciador não está exposto à mentira). E, b) o enunciador não espera que seu discurso seja interpretado mediante uma relação “extensional” com os objetos, entidades e acontecimentos dos quais fala (por isso, o enunciador não está exposto ao erro nem à mentira). (MIGNOLO, 2001, p. 122-3).
Nádia Battella Gotlib, ao ler Frank O’Connor, destaca o papel que a solidão do homem e sua voz solitária desempenham na análise do conto em livro The lonely voice, de onde partem suas considerações. Diz ela:

O conto, segundo O’Connor, visa satisfazer o leitor solitário, individual, crítico, porque nele não há heróis com os quais este possa se identificar, tal como acontece no romance, em que esta solidão é de certa forma amenizada ou desaparece, na medida em que compartilha as ações do herói e se identifica com ele. No conto, mundo solitário de seres solitários, são todos herdeiros de “O Capote”, de Gogol, afirmava Turgueniev. Porque Gogol criara o little man, a personagem situada entre o heróico e o satírico, que caracteriza a “população submersa ou marginal” e que tenta o escape ou a fuga desta situação. Ainda segundo O’Connor, no conto não há também a totalidade de uma experiência, com desenvolvimento cronológico, como no romance, mas a seleção de pontos, que acabam definindo o seu sucesso ou o seu fiasco. (GOTLIB, 2006, p. 57)

Os contos que se analisa nesta abordagem lidam com a solidão absoluta de alguns personagens, um que a recusa, ao aceitar uma parceira, enquanto o outro, de Márquez, é cada vez mais empurrado para um universo em que a solidão é a única companheira. Assim, o leitor solitário pode imergir no universo da personagem do conto, talvez mirar-se em um espelho.
Para Gotlib, cada conjunto de contos, ou mesmo a singularidade de certos contos pode produzir singularidades teóricas, ou casos teóricos, o que valida a abordagem desta leitura que se pretende dos contos objetos de análise: A última viagem do navio fantasma e O conto da Ilha Desconhecida. Gotlib diz que:

Se as noites em que se contavam os contos se desdobraram em mil e uma, tentando, assim, adiar a morte, parece que as tentativas de se buscar um elemento comum aos contos para além do simples contar estórias, que o liga a sua tradição antiga, tendem também a se desdobrar, tal qual sua antiga tradição, em quase tantas quantos são os contos que se contam. O que faz também, de cada conto, um caso... teórico. (GOTLIB, 2006, p. 83)


Assim, se as leituras que se fazem dos contos podem prever diferentes casos teóricos, a leitura aqui proposta foge ao convencionalismo do realismo fantástico, que procura qualificar, de forma generalizada os contos de Márquez e Saramago, e indicar uma outra possibilidade de leitura, via surrealismo – pela presença dos sonhos – e pela leitura alegórica, compreendida como uma seqüência de metáforas e figuras, que conduz a certas variações do maravilhoso.
Em seus estudos sobre as variações do conto, Ricardo Piglia (1994, p. 37) afirma que o conto é uma obra que carrega mais de uma história e que sempre permitirá uma leitura outra, afastada da leitura primeira. Para ele, todo conto apresenta uma história aparente e uma história cifrada e que a segunda pode ser encontrada no subtexto, ou seja, no nível do texto que só pode ser percebido por meio dos subentendidos. Assim, a história secreta é contada em fusão com a história aparente e cabe ao leitor decifrá-la.
Com o objetivo de afastar esta análise da vertente do realismo fantástico, procuramos a explicação para o fantástico em Todorov (2006), não exatamente como gênero indicado pelo teórico, mas como modo, ou seja, a partir das considerações elaboradas por Rosemary Jackson (2001, p. 23-32) sobre a teoria de Todorov.
Nas elaborações de Tzvetan Todorov, o teórico indica a determinação dos gêneros como histórica ou teórica. Ele opta por tratar o fantástico como gênero teórico , e diferencia três categorias que se encontram em eixos mais próximos ou mais afastados da representação da realidade, a saber: o estranho (ou misterioso), o fantástico e o maravilhoso e, ainda, duas outras categorias intermediárias: o fantástico-estranho e o fantástico-maravilhoso. Considera-os como gêneros e não como modos, entendendo que as diferenças se encontram nas estruturas que explicam os elementos sobrenaturais presentes, ou ausentes, na narrativa.
Para Todorov, se o fenômeno sobrenatural que provocava a incerteza do leitor e da personagem se resolve no final da narrativa de forma racional, encontra-se incluso no gênero estranho (ou misterioso). Assim, o fenômeno que pretendia escapar às leis físicas do mundo real, tal como a ciência o explica, não passa de um engano dos sentidos e pode ser resolvido e esclarecido por essas mesmas leis.
No entanto, se o fenômeno sobrenatural permanece sem explicação, ou seja, se o leitor permanece na dúvida, predomina o fantástico; e se após o final do relato, observa-se que não há explicação que se enquadre nos parâmetros da racionalidade ocidental nos encontramos no domínio do maravilhoso. Tal seria o caso dos contos de fadas, fábulas, lendas, romances que criam mundos inexistentes no real, onde os detalhes irracionais fazem parte tanto do universo ficcional quanto de sua estrutura. Para Todorov, o fantástico se encontra entre o estranho e o maravilhoso, e só se mantém como gênero fantástico enquanto o leitor implícito, ou a personagem, encontra(m)-se em estado de dúvida ou incerteza entre uma explicação racional e uma irracional. Ou seja, o gênero fantástico caracteriza-se em função de uma vacilação, de uma incerteza do leitor ou da personagem. Dessa forma, Todorov estabelece a conceituação do gênero em um ponto exterior à obra em si, ou seja, na relação entre a obra e sua recepção. E esse posicionamento será aqui admitido, considerando o maravilhoso não como gênero, mas como “modo”.
Nos contos de García Márquez e José Saramago, objetos deste trabalho, a vacilação do leitor diante da possibilidade oscila em alguns momentos. No entanto, em O último navio fantasma, a dúvida logo se dissipa e verifica-se a impossibilidade da realidade, ou seja, é preciso estabelecer um pacto com o narrador em torno do insólito e procurar uma outra leitura que explique a sequência metafórica articulada pelo narrador. Embora a personagem acredite no que vem afirmando desde o início, e concretize o aparecimento da imensa embarcação ao final do conto, que racha a terra do pequeno povoado, aportando à entrada da Igreja, o leitor sabe que, no parâmetro da realidade física, essa façanha é impossível. Somente uma leitura “outra”, em que a embarcação funcione como alegoria de uma catástrofe permitirá a compreensão exata da intenção do artista.
No conto de Saramago, ocorre quase o mesmo fenômeno. A incompreensão inicial do leitor em relação à situação da embarcação parada no cais, sem um destino objetivo a seguir ou um trajeto pré-determinado a cumprir, delegada a um homem que pouco entende de mar, conduz o leitor a uma dúvida ou incerteza em relação à compreensão do texto e da intenção do narrador.
No entanto, os questionamentos sobre os desejos de busca interior, na direção do próprio “eu” da personagem, remontam à idéia de uma fusão entre a embarcação e o seu condutor. De maneira que, ao transformar sua vida, juntamente com a da mulher que o segue, busca mais que uma ilha desconhecida: procura a compreensão de sua própria natureza, razão e experiência como homem no imenso oceano que é o próprio mundo em que habita. Mas a dúvida logo se dissipa no leitor e, ao deparar-se com o nome com que é batizada a embarcação - Ilha Desconhecida -, o leitor percebe que a embarcação irá em busca de si mesma. Portanto, somente um sentido “outro”, que não esteja expresso ali, ou seja, um sentido retirado do subentendido pode explicar o texto de Saramago.
Por outro lado, a teoria da literatura afirma que, quando um texto pode ser lido com um sentido que se afasta do primeiro sentido, ou seja, quando o texto permite mais de uma leitura, encontramo-nos diante de uma alegoria. Ou, de uma seqüência de metáforas que, de qualquer maneira, podem constituir uma alegoria.
Considerada como um subentendido do discurso, capaz de deslocar imagens a partir de um significante enunciado que pode remeter a outro, a alegoria constitui uma espécie de figura semântica e de pensamento resultante da descrição ou narração de certa coisa, de tal forma que essa mesma descrição ou narração, ou a essência que a constitui, também possa se aplicar a outra. Quintiliano já a dividia em alegoria pura – que se encontra a um passo do enigma – e alegoria mista – provida de indicações marginais -, possibilitando a associação da coisa descrita com a subentendida. O grego a resumia como uma “sequência de metáforas”.
Para Walter Benjamin (1984, p. 214-5), o conceito de alegoria, em que o particular só vale como exemplo do universal, é convenção e expressão, e pode manifestar-se tanto no elemento lingüístico quanto no figural e no cênico. Os traços alegóricos são cobertos por um manto de invisibilidade.
Transcorrendo sobre a evolução do conceito de alegoria, Benjamin observa que na medida “em que a Renascença renova o elemento pagão e a Contra-Reforma o elemento cristão, a alegoria precisa também renovar-se, como a forma de sua confrontação”. No entanto, a Idade Média terminou por associar indissoluvelmente a natureza, ou seja, o material, ao demoníaco (BENJAMIN, 1994, p. 249-250).
Para Todorov, a presença da alegoria ou do sentido alegórico remete ao que se convencionou denominar gênero maravilhoso. No entanto, por meio dos estudos de Rosemary Jackson (2001), propôs-se neste trabalho uma reformulação teórica, considerando o maravilhoso como modo. Então, a presença do sentido alegórico indicaria a presença do “modo maravilhoso” na ficção.
Pelas imagens do maravilhoso criadas nos enunciados orais ou textuais, encontra-se uma oposição entre o sentido alegórico e o sentido literal. Nesse caso, “literal” pode significar tanto referencial, descritivo ou representativo, enquanto alegórico refere-se ao sentido figurado, especificamente à construção de alegorias pelos enunciados.
Todorov também tratou da questão da alegoria, pois somente pela sua percepção se torna possível separar o fantástico – momento de hesitação em relação à possibilidade pela razão ou não – do maravilhoso. Para isso, o teórico descreve distintos graus da alegoria:
1. Alegoria evidente: a fábula é o gênero que mais se aproxima da alegoria pura, em que o sentido primeiro das palavras tende a se apagar inteiramente. Os contos de fadas contêm elementos sobrenaturais, se aproximam às vezes das fábulas. Neles, o sentido alegórico está explicitado no mais alto grau. O leitor real não se preocupa com o sentido alegórico indicado pelo autor e lê o texto descobrindo um sentido muito distinto. Esse sentido alegórico pode aparecer em obras que já não são contos de fadas, mas narrativas “modernas”. É o reino do maravilhoso.
2. Alegoria ilusória: a introdução de um elemento sobrenatural em um cenário que trata de detalhes cotidianos. Os elementos sobrenaturais não estariam ali para evocar um universo distinto do universo real do leitor, mas ele se sente tentado a buscar uma interpretação alegórica. O elemento sobrenatural pode sofrer metamorfoses e, ao buscar uma interpretação alegórica, o leitor pode ser impelido novamente ao sentido literal. No entanto, é justamente a presença de metamorfoses inexplicáveis que garante a perspectiva da alegoria, confirmando o maravilhoso, no nível do absurdo.
3. Alegoria Indireta: onde o sentido alegórico é indubitável, mas é indicado por meios mais sutis que uma moral apresentada ao final do texto. Há uma complexidade formal na imagem alegórica: o elemento sobrenatural funciona como uma metáfora de algo; ele pode ser uma metáfora da vida, ou uma metonímia de algo, de um desejo, de um sonho. A diferença entre o primeiro nível da alegoria é que aqui o sentido literal não se perde completamente. No entanto, as propriedades extraordinárias do elemento sobrenatural escolhido como símbolo alegórico é que impedem a persistência do fantástico e confirmam abertamente a intervenção do maravilhoso.
4. Alegoria vacilante: no terceiro grau de debilitação da alegoria se encontra no relato em que o leitor chega a vacilar entre interpretação alegórica e leitura linear. Nada há no texto que indique um sentido alegórico, no entanto, esse sentido segue sendo possível. Enquanto as palavras remetem a um sentido alegórico, mas também são pertinentes no nível literal.

A presença dos sonhos tanto no conto de Saramago quanto no conto de García Marques nos conduzem pela vertente estilística do surreal, mas as lendas em torno dos descobrimentos e de navios fantasmas, nos levam às trilhas das lendas e dos contos populares, ou seja, do maravilhoso, articulado por meio de alegorias indiretas, em que o sentido primeiro é mantido simultaneamente aos sentidos outros, depreendidos de uma leitura alegórica.
É por meio do sonho que se podem entrever as formações insólitas. Tanto que no conto de García Márquez, ao final, não se pode de fato afirmar que o protagonista está vivo ou morto. Ou se ele simplesmente sonha, como tantas noites de março o fizera na praia e, agora, (quem sabe?), na pequena embarcação.
Em Saramago, o protagonista sonha em uma só noite, como espécie de profecia determinante da vida futura da embarcação – a qual já passa a representar a sua própria vida - fundeada no cais português, entregue à vida terrestre, da qual ele mesmo termina participante e infeliz. É o seu despertar para a realidade que o faz partir em busca da Ilha Desconhecida e, profetizando que talvez jamais a encontrasse, termina por nomear a própria embarcação: Ilha Desconhecida. Assim, confirma que seu próprio universo, a partir de então, representado pela fusão entre o casal e a própria embarcação é também uma ilha desconhecida, a qual ele mesmo tratará de desvendar, uma vez que se lança ao mar, para ele, também, um universo desconhecido, um mundo a ser descoberto, como seu próprio interior.
A presença do sonho tanto em um quanto em outro conto, desvelando imagens latentes que terminam por configurar parte do enredo das duas histórias, vinculam as produções dos autores com a vertente do surrealismo. É válido lembrar aqui que o surrealismo é que vai originar o realismo mágico e também o realismo fantástico.
O realismo mágico, no entanto, não pode ser privilegiado aqui, pois ele implica justamente a narração com certa ausência de emotividade subjetiva, de maneira que o leitor não se emocione com os fatos representados. No entanto, tanto em García Márquez quanto em Saramago, a questão da emotividade que envolve o leitor é um elemento forte. Como não se envolver emocionalmente no turbilhão de emoções vividas pelo protagonista que adentra mar afora em uma pequena embarcação no meio da noite e sentir o calafrio de cada perigo que ele vive, à procura do transatlântico itinerante?
Ou, como não se emocionar com o protagonista de Saramago, homem da terra, que realiza seu sonho inicial enfrentando o poder real e obtendo um barco, envolvendo-se com a mulher que decidiu se unir a ele, saindo definitivamente pela porta das decisões? Ou como não sofrer durante o sonho desse homem comum e pouco conhecedor das águas que decide partir em busca do mais profundo de seu ser, que está em seu interior, mas também no espaço desconhecido?
No conto de Saramago, a crítica à burocracia das instituições hierarquizadas, como a sociedade da modernidade, aparece na primeira parte, quando o homem (um anônimo, como o protagonista de Márquez) dirige-se ao rei, o qual solicita o primeiro-secretário que resolva o caso; que, por sua vez, incumbe ao segundo-secretário e, assim, sucessivamente na decrescente hierarquia, até que a decisão pela impossibilidade do apelo do anônimo é comunicada ao solicitante pela mulher da limpeza, que lhe dá a resposta na porta das petições. O rei não o receberia e, portanto, não daria o barco que o homem pedia.
O homem protesta, dormindo na porta das petições, até que o rei resolve falar com ele. E, após apelo popular, resolve dar-lhe a embarcação solicitada, avisando que qualquer ilha que porventura fosse descoberta – apesar de não acreditar na existência de ilhas desconhecidas – seria propriedade do rei. A que o homem retruca dizendo: “A ti, rei, só te interessam as ilhas conhecidas” (SARAMAGO, s/d, p. 18).
Recomendado ao capitão do porto, que deveria dar ao homem um “barco seguro”, o anônimo dirige-se ao local onde deveria receber a embarcação e, confessando não ser um homem do mar, solicita àquele um barco “que eu respeite e que possa respeitar-me a mim” (SARAMAGO, s/d, p. 26). Tratava-se de uma caravela adaptada.
Ao perceber que o barco indicado pelo capitão era o mesmo “escolhido” por sua rara intuição, a mulher da limpeza que seguira o anônimo, se apresenta em estado de euforia, pois segundo ela: “as portas que eu realmente queria já foram abertas e porque de hoje em diante só limparei barcos, (...) Saí do palácio pela porta das decisões (...)” (SARAMAGO, s/d, p. 31). O jogo de portas do palácio, de entradas e saídas funciona no espaço do lúdico, do enigma, que obriga o leitor à releitura do conto.
O anônimo, agora dono da embarcação, não conseguiu trazer qualquer homem que estivesse disposto a procurar qualquer ilha desconhecida, pois “não iriam eles tirar-se do sossego de seus lares e da boa vida dos barcos de carreira para meterem-se em aventuras oceânicas, à procura de um impossível, como se ainda estivéssemos no tempo do mar tenebroso” (SARAMAGO, s/d, p. 39).
Embora o conto pareça organizar-se com alguns elementos que o associam à realidade histórica portuguesa – pelas imagens do rei e dos navios abandonados no cais; de homens acomodados, alienados pela força do sistema -, certas chaves de leitura revelam ao leitor que há um outro sentido a ser buscado nas palavras, no subentendido e no pressuposto. Trata-se de um sentido paralelo, desentranhado do subtexto, a exemplo da comparação que o anônimo tece em relação ao “mar tenebroso” e as “ilhas desconhecidas”: “visto daqui, com aquela água cor de jade e o céu como um incêndio, de tenebroso não lhe encontro nada, É uma ilusão tua, também as ilhas às vezes parece que flutuam sobre as águas, e não é verdade(...)”. E, ainda, “se não sais de ti, não chegas a saber quem és, (...) (SARAMAGO, s/d, p. 40).
A saída do homem em direção ao “outro”, seu diferente, o desconhecido, funciona como um dos sentidos que se pode desvelar pelo pressuposto, pois segundo o anônimo “é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não saímos de nós próprios” (SARAMAGO, s/d, p. 41).
Uma outra chave surge quando o casal se olha sob a luz de uma vela, cuja constatação do narrador é “demonstrativa” na construção: “aqui está como as pessoas se enganam nos sentidos do olhar, sobretudo ao princípio” (SARAMAGO, s/d, p. 49).

Assim, a presença da emotividade, do embarque do leitor pelas trilhas da subjetividade, da busca da compreensão das emoções do protagonista elimina certas características essenciais do realismo mágico.
Seymour Menton, em Historia verdadera del realismo mágico (1998), nos confirma que:
La diferencia de la pintura surrealista y la literatura fantástica [realismo fantástico], [es que] no hay distorciones, no hay sueños. El realismo mágico consiste em la introducción em la realidad cotidiana de un toque mágico mediante la aceptación sin emociones de parte de los protagonistas de un suceso extraordinário. (MENTON, 1998, p. 114) (grifos meus).

Para Menton, após os estudos de Franz Rohr, “elementos fantásticos e emoções humanas não cabem dentro do realismo mágico” (MENTON, 1998, p. 123), o que só pode filiar os contos à vertente surrealista ou ao realismo maravilhoso, considerando a possibilidade de uma leitura alegórica.
Em Saramago, o protagonista trabalha com o sonho diurno, ou seja, o sonhar acordado, no espaço da utopia, pois segundo a maioria das pessoas a quem ele expõe seu sonho, ouve que “já não há ilhas desconhecidas” (SARAMAGO, s/d, p. 39). Além desse sonho, há o sonho noturno, durante o sono, em que se confirma que “a ilha desconhecida é coisa que não existe, não passa duma idéia da tua cabeça (...)” (SARAMAGO, s/d, p. 56).
O texto expõe uma escolha entre o conhecido e o desconhecido, o seguro, o definitivo, ou seja, a vida na terra, com as práticas que envolvem a mesmice e a incerteza do desconhecido, o sonho, a utopia de uma nova descoberta. Uma descoberta do próprio caminho, da própria identidade. Entre a certeza do conhecido e o incerto do desconhecido, apenas o sonhador é capaz de fazer a opção pelo que lhe parece estranho, contra todas as certezas e definições estabelecidas.
Em seu devaneio noturno, o protagonista de Saramago mergulha em um sonho em que a caravela se torna “uma floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, (...) onde começaram a cantar pássaros (...)” (SARAMAGO, s/d, p. 61). Assim, alegoriza, de alguma maneira, o momento em que o anônimo desiste de seu sonho em busca do desconhecido, pois em certo momento “o homem trancou a roda do leme e desceu ao campo com a foice na mão (...)” (SARAMAGO, s/d, p. 61). Neste momento, o homem acorda do sonho. De marinheiro, seu sonho diurno, passa a camponês, seu sonho noturno, que mais lhe parece um pesadelo. Desse, ele acorda feliz.
E, claro, como não entender essa relação dialética entre a vida no mar e a vida na terra como as duas faces do homem português, antes e depois da independência das colônias africanas, em seu constante processo de revisão de sua própria identidade, dividido entre o homem do mar e o homem da terra. Um homem que representa a classe subalterna do país. Ao tornar-se um sonhador, transforma-se em subversivo.
Subversivo em seu contexto é também o protagonista de A última viagem do navio fantasma. Novamente, a presença do sonho, nesse caso, do pesadelo premonitório, e o efeito alucinatório horrendo como uma profecia do futuro, facilita a uma leitura do texto de Márquez em que a embarcação é o símbolo alegórico das forças capazes de promover a separação (racha) de um país em função de interesses econômicos de “tubarões”, cujo “bafo” o jovem visionário percebe no momento em que ocorre a emersão definitiva do navio fantasma.
A compreensão profunda do texto de Márquez pode encontrar-se tanto em uma vertente realista quanto em uma vertente maravilhosa. A primeira se reporta à história da Colômbia, especificamente no conflito conhecido como Guerra dos Mil Dias, quando o Departamento do Panamá organizou uma luta por sua independência. A segunda, a vertente maravilhosa, surge quando se toma como paradigma as lendas e contos locais que falam dos navios afundados durante o período colonial, tornados fantasmas, nas lendas sobre os piratas, bucaneiros e filibusteiros e corsários da História do Caribe.
A vertente realista se pauta na história da Colômbia que, sem qualquer condição de reagir, viu os Estados Unidos promoverem um levante separatista, no então departamento do Panamá, o qual foi vitorioso em 1903, devido ao apoio “providencial” dos fuzileiros navais norte-americanos. Desse movimento separatista, surgiu a completa separação da Colômbia do então Panamá, e, posteriormente, aconteceu a entrega da atual Zona do Canal para a construção e utilização pelos norte-americanos, com direitos perpétuos, uma "avenida da civilização" – denominação dada pelo Presidente Roosevelt ao canal. Mais tarde, os Estados Unidos ofereceram uma indenização de 25 milhões de dólares ao governo colombiano, mas a cicatriz da nacionalidade ferida pela política do Big Stick, de Roosevelt, se encontra aberta até os dias de hoje.
A história do Panamá, desde a sua independência, em 1903, até os dias atuais, se encontra associada aos interesses norte-americanos, e gira em torno da construção e do controle do Canal do Panamá. O canal possibilita economia de tempo e dinheiro no transporte marítimo entre os oceanos Atlântico e Pacífico. A cobrança de taxas para a utilização do canal é a principal fonte de recursos do Panamá. A vida do país gira em torno das atividades relacionadas ao canal. Os norte-americanos, porém, acabam por ser os grandes beneficiados pelo uso e pelo controle da “avenida da civilização”. Foi inaugurada no dia 15 de Agosto de 1914, e administrado pelos Estados Unidos até 31 de Dezembro de 1999 .
Assim, a chegada do grande transatlântico à porta da Igreja do pequeno povoado pode revelar o quanto havia de realidade nos devaneios noturnos do jovem comum, órfão, criado entre “o herói e o satírico”, desacreditado e martirizado, rechaçado pela população local, que não lhe dá crédito, tido como louco, por enunciar a “grande força maligna” que se aproxima: “encontrou foi o transatlântico fantástico, sombrio, intermitente, com o mesmo destino errado da primeira vez”. Lendo o conto por essa vertente, o leitor se depara com o tema das “misteriosas forças invasoras”.
A emersão do navio-fantasma indica o processo de ascensão do sistema que emerge em meio à tradicional forma de vida local. Assim, a “avenida da civilização”, como a nomeou Roosevelt passaria pelo local onde era antes a igreja e, pela dimensão, o próprio espaço do povoado: “Mãe, maior do que qualquer outra coisa grande no mundo” (...) “trezentas mil toneladas cheirando a tubarão”. A alusão ao canal pode ser vista na expressão: “ele podia ver as costuras do precipício de aço”. (MÁRQUEZ, p. 19). O tubarão é alegoria, aqui, do poder das ideologias dominantes e seu processo de devastação sobre os espaços colonizados.
Se ele conduz o transatlântico como um fantasma – “tirou-o do canal invisível e o levou, de cabresto, como se fosse um cordeiro do mar, até as luzes do povoado adormecido, um navio vivo e invulnerável aos efeitos do farol” (MÁRQUEZ, p. 27), efetivamente -, se é sua imaginação que o leva até o vilarejo, cabe ao leitor compreender. Assim, também, seria o bafo do tubarão tão somente uma outra alegoria da força do sistema que o exclui e, nesse momento da ruptura, quando o transatlântico racha o solo do vilarejo ao meio: o sistema estranho que devora o visionário.
A separação entre a Colômbia e o Panamá pode ser entendida na expressão: “gritando em meio à comoção [do povo], aí está ele, cornos, um segundo antes que o tremendo casco de aço esquartejasse a terra e se ouvisse o estrupício nítido das noventa mil e quinhentas taças de champanhe que se quebraram uma depois da outra, da proa à popa (...)” (MÁRQUEZ, p. 28). Veja-se na construção “noventa mil e quinhentas taças de champanhe” a marca inconfundível do “estilo hiperbólico de García Márquez” (MENTON, 1998, p. 120). E, então, se pode ver o nome da embarcação: Halalcsillag.
Halalcsillag, o nome inscrito no transatlântico que emerge ao final do conto de García Márquez, é uma palavra húngara que só pode ser traduzida pela expressão “Estrela da morte”, em português. Estrela da morte é, também, o nome de uma imensa cratera que aparece na série de filmes Star Wars (Guerra nas Estrelas), de George Lucas. Ela representa a cratera Herschel , que fica em Mimas, uma das grandes Luas de Saturno.
Como a cratera Halalcsillag, uma tremenda depressão é criada pela emergência do transatlântico, batizado com o homônimo perfeito. Ele emerge exatamente no momento em que o pequeno barco do visionário se encontra à deriva, em mar aberto. A embarcação que traz o nome da morte gravado em letras de ferro pode bem ser vista como a presença de forças estranhas, forças invisíveis, antes submersas e, a partir daquele momento, ali presentes, nos mares da morte.
Por que o imenso transatlântico que corta o povoado ao meio tem o nome de uma cratera que aparece no filme Guerra nas Estrelas, de George Lucas? Todas essas coincidências não parecem meras casualidades, mas extensões conceituais, que podem ser lidas como a alegoria de uma invasão em nome dos interesses econômicos estrangeiros no espaço caribenho, especificamente no início do século XX, como denúncia bem ao estilo de Márquez.
Por outro lado, o termo “mares da morte” pode não se referir especificamente às mortes no mar, mas à miséria, enfatizada diversas vezes no conto, associada às mortes que sucedem as séries de violências que emergiram com a independência do Panamá, para além de certa morte “identitária”.
A visão da imensa embarcação traz, simultaneamente, ao protagonista, o bafo do tubarão – o predador - e, em uma narração que procura conduzir o leitor também por caminhos quase indecifráveis, incertos e tumultuosos, como a consciência do protagonista, o narrador insinua que o protagonista poderia estar morto. Ou não! Teria ele escapado da fera que o devorava? Ou o bafo do tubarão representa o halo das forças que o conduziram àquele estado de exclusão?
O tubarão pode figurar como alegoria da sociedade ou do sistema que o devora, ou, ainda, da própria realidade que o devora, pois ignora seus sonhos e visões. O jovem órfão é desacreditado em suas falas. Sua figura é, também, polissêmica, como todo o texto. Após o encontro com o transatlântico, não é mais possível afirmar se está dormindo ou acordado, parece indicar que a morte possa de fato ter chegado e todo o enredo restante sejam as idealizações do menino que se concretizaram em um plano que foge à realidade concreta e se mescla ao universo do irreal, do impossível, do ilógico, característico das estéticas surrealistas e, em alguns pontos, uma extensão do realismo mágico, como as noventa mil e quinhentas taças de cristal que se partem no choque da embarcação com a terra firme,
É bom lembrar que Mimas é o nome da Lua que possui a cratera halalcsillag - Estrela da Morte. Sendo um dos Titãs da mitologia grega, Mimas pode representar o próprio espaço geográfico e histórico do Caribe. Mimas, na mitologia grega combateu, ao lado de Cronus (Saturno), contra Zeus (Júpiter). Mimas foi fulminado por Zeus ou morto por Hefesto (Vulcano), que lançou contra ele projéteis de metal em brasa.
Halalcsillag, a embarcação “fantasma” emerge, assim, como uma estrela, a estrela da morte, nos eternos mares povoados de mistérios de navios-fantasmas e heróis devorados pelos Impérios, o Caribe. No conto, o mar do Caribe é também fulminado pelo Império, assim como seu sonhador e visionário, e também como os heróis comuns em Georges Lucas.
Ilha Desconhecida, ao final do conto, finalmente reconhecida como uma embarcação, se lança novamente ao mar, agora não mais “tenebroso”, após tanta tanta alienação imposta pelo Império de seu próprio rei, o sonhador vai em busca de outras ilhas, em busca de si mesmo, em busca de sua própria identidade, conseguida apenas em sua relação com o “outro”.

ABSTRACT: The fiction El último viaje del buque fantasma (2001) is between the several publications by Gabriel García Márquez, with illustrations by Carmen Solé Vendrell, text who has the tales’ structure, considered literature for the youth or the adults. This work articulates a comparation of the text by Márquez with the text by José Saramago, O conto da Ilha Desconhecida (1998), with illustrations of the Arthur Luiz Piza. In the texts, have different patterns of allegories (Todorov, 2006). The allegories permit the lectures that conduit from interpretations capable of to redo the existential road, through conduction of the protagonist, in the direction at the idealization of the realities. Idealization wherein the presence of magic elements and the marvellous condense in different images of the embarkations; whose images of the sea show under different views, interfering in the existences as much one as other protagonist. On either the texts the images of the embarkations it has turned little by little its elements that suggest the realities with appearance that contrast among their. An embarkation has turned the secure port, an island capable to shelter the existence, while the other has turned the image of the insecure, of the unknown, more and more absurd, functioning in standard of instability of the things unreal.


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