domingo, 5 de dezembro de 2010

MALFADADAS FLORES EM "VERMELHO", DE AGUINALDO GONÇALVES

Rosangela Manhas Mantolvani


Aguinaldo Gonçalves ganhou, em 1990, o Prêmio na Categoria Ensaio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) pela publicação do livro Transição e permanência. Miró/João Cabral: da tela ao texto (1989), pela Iluminuras. Publicou ainda, entre outros, Laokoon revisitado – relações homológicas entre texto e imagem (1994), pela Edusp, onde elaborou um estudo comparado entre as obras de Miró e João Cabral, Magritte e Manuel Bandeira, além de Mondrian e Oswald de Andrade. Lançou ainda o livro de poemas Vermelho (2000), pela Ateliê Editorial, e Museu movente – o signo da arte em Marcel Proust (2004), pela Editora UNESP, um mergulho no clássico Em busca do tempo perdido, para mostrar os mecanismos lingüísticos que relacionam o discurso verbal ao plástico, chegando a concepções sobre o pensamento estético do escritor francês que podem ser ampliadas para o questionamento sobre a atividade artística, em suas mais variadas formas de expressão. Em 2007, publica In abysmus, seu segundo livro de poesia.

O percurso de Gonçalves pela poesia certamente não se iniciou em Vermelho (2000), pois o contato do poeta com a linguagem centrada na mensagem resultou do encontro cotidiano de sua atividade profissional - palco de interpretação de incontáveis poemas transformados em objetos-arte estendidos e palpáveis no espaço da sala-de-aula -, e da concretização de sua suprema capacidade de incentivar seus pupilos a se apaixonarem pelas armações artísticas da poesia em língua portuguesa. O objeto de seu labor se encontra, então, reexaminado no próprio fazer poético, e o autor trata de inseri-lo, na primeira parte do livro, entre citações e epígrafes de poetas já muito lidos e relidos: Catulo, Safo, Valéry, Baudelaire, Rimbaud, Drummond, Proust, João Cabral, Leminski, Arnaldo Antunes: grandes escritores da literatura mundial e brasileiros que aparecerão em aspectos intertextuais na segunda ou na terceira parte do livro.
É dessa experiência de releitura que nasceu provavelmente Vermelho e, ainda, da inquietação do criador que, possivelmente tendo percebido o conteúdo significativo e o significado que havia em sua possibilidade criativa, transbordou-a em forma de doação também aos seus leitores.
Com Gonçalves, a palavra escrita, o signo, decola em vôo da folha em que se encontra aprisionado e toma forma “no ar”, pois a musicalidade na leitura deixada pela voz em cada fonema que se diz musical, a interpretação dos sons e sensações do poema, dizem muito mais que a leitura de qualquer escrita em forma de versos plasmada sobre o papel.
Em Vermelho, essa necessidade de produzir o ritmo para ser lido, ou para ser visto, o poema como imagem e como som, funciona como tônica entre a escrita e o que está para ser produzido ou construído ainda pelo leitor. Dessa relação deriva a necessidade fundamental de uma leitura sonora de Vermelho, sem a qual não se encontram os sentidos de muitos de seus escritos, nos quais as equações sonoras são essenciais para que a poesia se realize plenamente.
A experiência da metalinguagem, da sonoridade e do visual, da construção de palavras no interior de outras, produz significados abundantes não apenas pela polissemia do conteúdo, mas também pela forma, e constituem recursos que sedimentam a singularidade do trabalho com os signos não apenas vermelhos, mas azuis, pretos, brancos, cinzas, laranjas nos fundos de tantas cores, onde os signos parecem tremeluzir fugidios de sua carcereira: a folha na qual pousa a tinta feita grafia. O grafema parece partir em direções várias, como a fugir em movimentos elípticos ou circulares, em movimentos conexos ou não, enquanto o espaço da página funciona como um local transitório e pouco seguro para estar.
Os conceitos da semiótica se aplicam de diferentes formas, permitindo extrair do texto outros sentidos, além de uma simples relação entre significantes e significados metafóricos, anunciando uma ruptura muitas vezes profunda nessa relação, a ponto de conduzir alguns poemas a um proposital nível de incompreensibilidade, pela via da racionalidade do senso comum, e procura revelar, intencionalmente, essa relação do signo com uma essência poética primeira. Ou, no contato direto, a busca de sua decifração imediata.
Enquanto a ocultação e o exercício de decifração pelo leitor/ouvinte/observador transforma-se em um verdadeiro exercício de recriação mental, em que as tentativas de associação remetem tanto para o interior quanto para o exterior do texto, e dos signos poéticos, o poema se estrutura em níveis significativos, descobertos e redescobertos a cada leitura.
Nos processos intertextuais, os mágicos movimentos sígnicos se fazem presentes pela simples lembrança das figuras do universo poético com quem dialoga: das malfadadas flores de Baudelaire ao ex-crucior (crucifixo-me) do antagonismo fusionista do ódio e do amor, da crucificação da criação poética em Catulo , surgidas em espirais infinitas, configuradas por e entre signos que se confundem em relação ao espaço, onde o d pode ser p ou b; e o t pode ser f, num desvelamento da relatividade do grafema em relação ao fonema, e revela, assim, uma indefinição sígnica, inclusa no infinito círculo gravitacional gerado pela força do excrucior, o que move todas as coisas, ou todos os signos, todas as ambigüidades das representações universais como força motriz e, simultaneamente, afirma o caráter de um "eu poético" inscrito no signo.
Do infinito universal à forma da rosa em cores várias, no ex-crucior há também a representação da malfadada flor, enquanto signo visual, tendo ao centro o sacrifício do fazer poético, ou da criação do universo em relação à criação poética. Entre a galeria de poemas que armam um percurso pela poesia, um deles é dedicado a Charles Baudelaire.

poema a Baudelaire

malfadadas flores
inscrevo-as aqui
em linhas contornadas
pela forma de meu tempo

lesbiânicas, satânicas,
recolho-as neste limbo em agonia,
demovo-as do lençol, em caracóis perdidos,
nestes graxos,
furo seus dois olhos,
arranco suas pernas,
pinto suas peles de verde-abacate
trituro suas pétalas, uma a uma
e faço o perfume dos meus dias.

não tenho, agora,
o esgrima,
mas tenho a noite, o fogo, a pena,
mitos emergentes,
para construir este segredo.

Em "poema a Baudelaire", a intertextualidade e a inserção de imagens de "Les fleures du mal" (As flores do mal), livro de poemas publicado em 1836, de Charles Baudelaire, encontra-se já no primeiro verso: "malfadadas flores", e insere uma imagem que, percebida no contexto do final do XIX, denota a má sorte, ou má predestinação de certas mulheres, expressas nos poemas do moderno francês. No entanto, não somente às jovens associam-se as flores.
Será melhor compreender, como indica Walter Benjamin na análise que faz da produção poética de Baudelaire, a percepção de que o francês, ao pintar o quadro de uma metrópole moderna, teria pintado uma "fauna feminina" que circulava na cidade-luz, Paris, em pleno movimento de uma nova arte: la modernité. Diz o teórico que a “fauna feminina das galerias: prostitutas, grisettes, velhas vendedoras com aspecto de bruxas, bufarinheiras, vendedoras de luvas, demoiselles – este era o nome dado aos incendiários travestidos de mulheres por volta de 1830.” (BENJAMIN, 1989, p. 242)
Se o destino das jovens pintadas nos versos baudelerianos, como quadros da sociedade parisiense, onde o que é marginal não escapa à pena do artista que repinta a "modernité", em Aguinaldo Gonçalves, a referência ao poeta e à sua criação, refaz a imagem das flores, literalmente e metaforicamente, e pelo viés da polissemia são "inscritas" na nova construçaõ, de tal maneira que essa inscrição exige que se mostrem com o contorno da contemporaneidade.
As flores-mulheres, ou as mulheres-flores encontram-se nos versos e de lá são "recolhidas" pelo eu-poético. O eu-lírico, colhedor das imagens, das metáforas, junta-as e demove as flores de seu local de origem, para, afastadas de seu (con)texto poético, arrancadas do construto inicial sejam desconstruídas, desmontadas como "imagem" poética e desnudas em sua essência.
Assim, a imagem das "flores" baudelairianas, tão gastas por tantas e sucessivas leituras confrontam-se com o eu-lírico do poeta que, apossado da imagem que submete a ações: furo, arranco, pinto, trituro, finalmente, após o processo de destruição, procede a uma outra alquimia da imagem e da palavra: a tranformação, a metamorfose: faço o perfume.
Na representação do presente, a imagem do perfume, qualquer coisa aparentemente vulgarizada pela relação com o
marketing
e o
mercado
na contemporaneidade, no entanto, é relacionado ao passado e funciona como um fio que liga o presente ao final do século XIX, ou seja, aos
hautés modérnes
. É o momento do
esgrima
, imagem e objeto, do qual o "eu lírico" não mais dispõe, como Baudelaire:

Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais
Exercerei a sós a minha estranha esgrima
Buscando em cada canto os acasos da rima

(BAUDELAIRE, "O Sol" , In: Quadros Parisienses, As flores do mal)

No entanto, os mesmos elementos que acalentaram a produção do "lírico no auge do capitalismo", como o intitulou Benjamin, sustentam a produção de Aguinaldo Gonçalves: a noite, o fogo, e a pena. Com esses elementos concretos, emergem os mitos que concorrerão para a contrução dessa lírica.
O estilo de Aguinaldo que, na parte a de Vermelho oscila entre o concreto, o material polissêmico, mas principalmente o metapoético, ou seja, a celebração de uma poética que trata da própria poesia, ou mantém uma relação intertextual com outros poemas, "inserindo", como alude o poeta, construções sintáticas, mas principalmente imagéticas de poemas consagrados do cânone.
Na terceira estrofe, encontra-se oculto o segredo que percorre os poemas da parte a, ao qual alude Arnaldo Antunes no Prefácio, ao apontar que "mais do que uma poesia que se pensa a si mesma, esta me parece uma poesia bêbada de si", em que a metapoética é capaz de colocar em foco uma imagem que transita entre os sentidos do poema de onde se origina, no caso, alguns poemas de Les fleures du mal, de Baudelaire e esta recriação.
A "imagem oculta", da massa, indicada por Benjamin, como sempre presente no "fundo" da poesia baudeleriana nos revela a necessidade da figura do esgrimista, porque na "multidão amorfa, a imagem do esgrimista pode ser decifrada: os golpes que desfere destinam-se a abrir-lhe o caminho através da multidão". Segundo o teórico Walter Benjamin, "a secreta constelação (...) deveria ser assim apreendida: é a multidão fantasma das palavras, dos fragmenos, dos inícios dos versos (...)" (BENJAMIN, 1989, p. 113).
É esse poder do gesto de abrir caminho na multidão, de fazer-se vanguarda literária que o poeta contemporâneo acredita não poder mais exercer. Por isso já não se constitui esgrimista, não possui o "esgrima". Apenas a noite, o fogo e a pena.
O elemento "perfume", tão presente em Baudelaire, de Les fleures du mal e principalmente e Correspondances é refeito em Gonçalves. O odor, o perfume, segundo Benjamin é "o refúgio inacessível da mémoire involontaire. (...) Se, mais do que qualquer outra lembrança, o privilégio de confortar é próprio do reconhecer um perfume, é talvez porque embota profundamente a consciência do fluxo do tempo. Um odor desfaz anos inteiros no odor que ele lembra". (BENJAMIN, 1989, p. 135)
E a memória das imagens parece ser a matéria plástica essencial à criação dessa poesia que engendra um compromisso com o sentimento, com a concretude da vida no presente, feita de estilhaços e de fragmentos, como os fragmentos do tempo e da história de um cânone montado para refazer os percursos da própria história da poesia.
Por isso, o perfume passa a ser o companheiro eterno dos dias do poeta da contemporaneidade, as sinestesias baudelairianas são trazidas ao momento presente, como sentidos que não podem ser recuperados, mas são, pela construção de uma imagem concreta em uma tentativa inusitada de reconstruir concretamente o material evanescente.
Assim, em Aguinaldo, "o perfume dos meus dias", o perfume do tempo do eu-lírico, é feito a partir da desconstrução e posterior transformação dessas memórias involuntárias que o remetem ao próprio cânone da poesia universal, em que as flores baudelairianas sugerem também a imagem das mulheres-flores das galerias, ruas e casas de tolerância parisienses do final do oitocento.
A homologia entre a destruição da mimesis das formas femininas convencionais e sua substituição pelas imagens da distorção e da desconstrução podem ser confirmadas pelos verbos sinalizando esse processo - furo, arranco, pinto, trituro - e as partes do corpo feminino a que se referem - olhos, pernas, pele -, quando se confundem com o corpo da flor: suas pétalas, na segunda estrofe, indicando uma relação metafórica capaz de alegorizar os processos de metamorfose a que se encontram sujeitos não somente os objetos, mas os seres humanos e, nesse caso, os seres femininos, em seus percursos mal fadados.
No processo de desconfiguração do real, a pintura controversa e radical de Picasso, em Les Demoiselles d”Avignon (1907), recupera a imagem das flores, malfadadas, como as de Baudelaire, em que inclui o traço da arte africana em duas das mulheres das cinco que constrói na tela, marco de uma estética modernista no início do XX. Expostas, as flores-mulheres de Picasso, moças de sexo da Rua D’Avignon, em Paris, refazem a imagem do poema baudelairiano e estabelecem uma homologia com o poema de Gonçalves. Da tela ao texto, o poema sugere o que a dimensão da pintura sonega: o perfume.
Em Baudelaire, são as ruas, os becos, as casas de tolerância, as galerias: jardins onde se encontram ambientadas essas malfadadas flores. Nesses espaços, os clientes ou as clientes, bêbado(a)s do consumismo da Paris do capitalismo, estendem seus braços e apanham, mobilizados pelo fetichismo de mercadoria, as comerciantes do sexo, também objetos, as malfadadas flores baudelairianas. Saídas desses ambientes, desses lençóis, como prefere Aguinaldo Gonçalves, são imediatamente relançadas em seus versos, para que renasçam como perfume no cotidiano do poeta.

Referências Bibliográficas
BAUDELAIRE, Charles. Les fleures du mal. (As flores do mal). Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. In: Obras Escolhidas. Vol. III. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.
GONÇALVES, Aguinaldo J. Vermelho. Cotia – SP: Ateliê Editorial, 2000.

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